A comemoração do Brasil como livre de febre aftosa sem vacinação não poderia ser mais típica: com churrasco. Duzentos quilos de carne – 160 de bovina e 40 de frango – foram para a grelha na presença de 250 empresários, autoridades e convidados. A sexta-feira (6/6) em Paris marcou o cumprimento de uma meta importante e o início de outro trabalho, que envolve articulação política e cooperação técnica: manter a doença longe e ganhar mercados com o novo status sanitário
“O reconhecimento da OMSA (Organização Mundial de Saúde Animal) não é um ponto final, mas sim um novo começo para a pecuária, para a economia e para a imagem do Brasil no mundo”, declarou a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec), em carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, entregue no evento. (leia a íntegra aqui)
O desafio sanitário
Na carta, a Abiec destaca que o Brasil atingiu um novo patamar institucional e passou a deter “o melhor status sanitário do mundo”. Além de livre de febre aftosa sem vacinação, o país é reconhecido como de risco insignificante para a Encefalopatia Espongiforme Bovina (EEB), também conhecida como o mal da vaca louca.
O novo certificado traz a necessidade de “adaptações técnicas e regulatórias”, avalia a entidade, o que inclui o fortalecimento do sistema de inspeção sanitária do Brasil. Representantes do setor afirmam que o país precisa se manter ainda mais preparado para reduzir riscos e evitar novas crises sanitárias.
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Exemplos não faltam. O Uruguai registrou um caso de febre aftosa depois que recebeu o status sanitário que o Brasil conquistou nesta semana. Voltou a vacinar o rebanho. Na Alemanha, a doença reapareceu depois de 40 anos, mas sem a obrigatoriedade de aplicar as vacinas.
Nos países vizinhos, a principal preocupação é a Venezuela, que não tem status oficial para a doença nem clareza nas informações. A Bolívia recebeu o reconhecimento de livre sem vacinação. Argentina e Paraguai não têm registros de casos, mas mantêm a vacinação. O Brasil não registra um foco de febre aftosa desde 2006.
“A dúvida não é se a aftosa vai reaparecer no Brasil, mas quando”, diz Emílio Salani, vice-presidente do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos de Saúde Animal (Sindan), que atuou nas negociações para retirada gradual da vacina.
Movimentação de animais doentes em fronteiras secas – por contrabando ou roubo de gado (abigeato) – e a entrada no Brasil, via portos e aeroportos, de pessoas e produtos de áreas infectadas são fatores de risco. Para Salani, o ideal seria criar um “anel de proteção” na fronteira com a Venezuela, inclusive com doação de recursos e vacinas.
“Se for preciso retomar a vacinação (no Brasil), os prazos se alongam e os prejuízos serão grandes”, completa.
Rastreabilidade, investimentos e fiscalização
Os bovinos demandam maior atenção. São animais que circulam em ambientes abertos, diferentemente dos suínos, que também podem contrair febre aftosa, mas as criações permanecem nas granjas.
João Paulo Franco, coordenador de Produção Animal da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), é necessária uma “vigilância ativa”, principalmente dos produtores, para identificar suspeitas e notificar as autoridades de defesa sanitária.
A implantação de um sistema de rastreabilidade individual dos animais também pode ser um reforço nas medidas de contenção e controle. O governo lançou o plano em 2024, com a promessa de total implantação em um prazo de sete anos.
“A partir do momento que tivermos o sistema pronto, o produtor vai aderir, porque o mercado vai exigir e pagar por isso. Estamos trabalhando na comunicação com os produtores, mostrando que é uma questão sanitária, de proteção do país, do seu patrimônio, e é fundamental”, explica.
O Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical) avalia que manter o status sanitário exigirá atenção redobrada do Estado. Envolve investimentos e reforço de pessoal, para garantir a estrutura adequada às “novas e rigorosas ações de vigilância e controle sanitário do rebanho” necessárias.
Recentemente, o Ministério da Agricultura convocou 200 auditores que passaram em concurso público no ano passado, e 240 técnicos de defesa agropecuária. O sindicato da categoria cobra o chamamento do cadastro de reserva diante do déficit de profissionais na área, com demanda crescente do setor produtivo.
Promover melhorias no sistema de inspeção sanitária envolve recursos. Antes de viajar para Paris, na comitiva presidencial, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, anunciou o envio de dois projetos de lei para o Congresso Nacional. Um prevê a criação de um fundo nacional para o controle de crises sanitárias. Outro, a permissão de pagamento de horas extras aos fiscais agropecuários pelo trabalho nessas situações.
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A Abiec é simpática à ideia de a indústria ajudar a bancar as horas extras, afirma o seu presidente, Roberto Perosa, ex-secretário de Comércio e Relações Internacionais do Ministério da Agricultura. Outra demanda é a regulamentação do autocontrole, que permite ao setor privado inspecionar animais e carcaças antes e após o abate.
Os auditores fiscais são contra o autocontrole. “Esse avanço (no status sanitário) acontece em um momento crítico, em que a produção pode estar em risco se o Brasil seguir no caminho da privatização das inspeções, que fragiliza a segurança alimentar e a credibilidade internacional do nosso sistema de fiscalização”, diz Janus Pablo Macedo, presidente do Anffa Sindical.
A busca por novos mercados
Governo e representantes da cadeia produtiva da carne avaliam que o status de livre de febre aftosa sem vacinação abre oportunidades de chegar a mercados onde, atualmente, a carne brasileira ainda enfrenta restrições. Há países onde os protocolos sanitários exigem dos fornecedores a certificação que o Brasil passou a ter.
Na carta ao presidente Lula, a Abiec, que reúne empresas com 98% de participação nos embarques de carne bovina brasileira, ressalta que a nova condição coloca o Brasil no radar de mercados como o Japão, Coreia do Sul, Turquia, Filipinas, Indonésia, Canadá, México e China.
Com alguns, como japoneses e sul-coreanos, seria o início de uma relação comercial. Com outros, como a China, a ampliação da pauta de exportação.
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Para Wesley Batista, integrante do Conselho de Administração da JBS, o Brasil está em um “excelente momento”. Agora, deve pedir que outros países também reconheçam a certificação da OMSA. “Não é algo que acontece em semanas, mas também não demora muito. Deve ser feito ao longo do ano”, avalia o empresário.
O ministro Carlos Fávaro defende que o reconhecimento seja automático. Como não é, o governo vai negociar a atualização dos protocolos e a abertura de mercados. “Gradativamente, com todos os países, vamos apresentar o certificado e pedir que façam também o seu reconhecimento do Brasil livre da febre aftosa sem vacinação.”
O governo brasileiro também defende a aplicação regionalizada de regras de restrição de comércio em caso de crises sanitárias. Durante a cerimônia de certificação, em Paris, Fávaro destacou que o Brasil tem dimensões continentais, e um problema sanitário em uma região não reflete, necessariamente, a situação de todo o país.
Mercados que pagam mais
Analistas de mercado consideram que o novo status sanitário do Brasil deve ter um efeito limitado no aumento dos volumes de exportação de carne. O ganho maior deve ser em receita, diante da possibilidade de vender para mercados que pagam até 90% a mais em relação aos valores atuais.
No Japão e na Coreia do Sul, principais objetos de desejo da indústria de carne bovina, Estados Unidos e Austrália são os principais fornecedores. Nova Zelândia e Canadá também atender o mercado sul-coreano.
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“O potencial do Brasil em termos de ganho de espaço será, principalmente, nas importações hoje provenientes dos Estados Unidos, que enfrentam condições desafiadoras de oferta e um mercado interno sólido, quando comparado com as exportações australianas”, avalia João Figueiredo, da Datagro Pecuária.
Segundo a consultoria, em março, o preço médio da carne do Brasil no exterior foi de US$ 4,88 mil a tonelada. No mesmo mês, a carne australiana valia US$ 7,01 mil. Em maio, o valor médio do produto brasileiro foi de US$ 5,2 mil, conforme o governo federal. Levantamento da Scot Consultoria aponta que o Japão paga de US$ 7 mil a US$ 10 mil por tonelada.
“Eles (japoneses) concentram o consumo em cortes de traseiro, de maior valor agregado, mas compram tudo”, diz Alcides Torres, da Scot Consultoria.