Um estudo focado no comportamento sexual de homens cisgênero brasileiros revela aspectos importantes sobre como eles encaram o uso do preservativo. Publicado em junho na revista Ciência & Saúde Coletiva, o trabalho foi conduzido por pesquisadores de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul.
A equipe analisou as respostas dadas por 30 mil homens sexualmente ativos, coletadas a partir da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019. Produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde, o levantamento permitiu cruzar dados sobre a declaração de utilização do preservativo, o diagnóstico de ISTs e a orientação sexual declarada pelos indivíduos.
Os resultados revelam que apenas 25,7% dos heterossexuais usaram camisinha em todas as relações sexuais no último ano. Já entre homens gays e bissexuais, esse indicador foi de 56,3%. No caso da última relação, enquanto 80,5% dos indivíduos homoafetivos declararam ter utilizado preservativo durante a atividade sexual, somente 41,1% dos héteros o fizeram
Entre os participantes que moram com o parceiro, a equipe constatou que 37,9% dos homens que se identificam como homossexuais ou bissexuais fazem uso contínuo de preservativo. Entre os que não vivem com o cônjuge, esse percentual foi de 62,4%. O padrão se aplica também aos heterossexuais: apenas 13,4% dos que vivem com sua parceira usam camisinha, contra 57% dos que não moram com a companheira.
Para os autores, esses resultados propõem novas perspectivas para atualizar programas de prevenção vigentes, a fim de atingir uma parcela ainda maior de pessoas. “Nosso objetivo era desconstruir a ideia de ‘grupos de risco’, indicando que o contexto no qual os sujeitos estão inseridos é mais importante para se pensar a prevenção do que o pertencimento a um grupo de orientação sexual ou outro”, afirma a pesquisadora Flávia Pilecco, primeira autora do estudo e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “É fundamental que as políticas públicas fomentem discussões sobre a negociação do uso de preservativo em relações estáveis homo/bi e heterossexuais.”
Fora do estereótipo
No auge da epidemia do vírus da imunodeficiência humana (HIV), nos anos 1980 e 1990, os homens gays e bissexuais foram considerados “grupos de risco” para essa e outras infecções sexualmente transmissíveis. Isso os tornou alvos das campanhas de incentivo ao uso de camisinha pelos programas nacionais de prevenção.
Mas também acabou reforçando o estigma de que seriam as únicas vítimas dessas doenças. “Como mostramos em nosso estudo, o uso dos preservativos pode não estar necessariamente associado à orientação sexual dos sujeitos, mas, sim, ao tipo de relacionamento em que eles se encontram”, destaca Pilecco.
Pesquisas anteriores já haviam observado que casais que passam a morar juntos acabam optando por deixar o preservativo de lado. “Isso ocorre tanto por conta de uma menor preocupação com as ISTs, devido à confiança no pacto de exclusividade dos relacionamentos monogâmicos, quanto por uma tentativa de busca por mais prazer nas relações”, analisa o urologista Daniel Zylbersztejn, do Einstein Hospital Israelita.
Embora alguns homens aleguem que a camisinha diminui a sensibilidade durante o sexo, hoje há diversas opções de produtos no mercado brasileiro, como os que são mais finos. “Essas camisinhas possibilitam uma experiência muito semelhante àquela sentida no sexo desprotegido, tanto é que muitos relatam não ter nem sentido a presença do preservativo durante a atividade”, destaca Zylbersztejn.
Desequilíbrio nas campanhas de prevenção
Na pesquisa brasileira, um dado que permaneceu relevante mesmo após todos os ajustes em relação à coabitação diz respeito aos relatos de diagnóstico de IST no último ano. Homens gays e bissexuais reportaram infecções em proporção quase dez vezes maior do que os héteros – 6% contra 0,5%, respectivamente.
Esse resultado levantou a hipótese de que, além de uma maior exposição a riscos específicos, essa população também realiza mais exames de rotina (como os testes rápidos para HIV, sífilis e hepatites), o que aumenta a chance de detectar uma infecção. Já entre os heterossexuais, o sentimento de não estar em risco pode levar à baixa adesão à testagem, contribuindo para uma possível subnotificação de casos.
“Não existem políticas de testagem e aconselhamento voltadas aos homens heterossexuais, e essa é uma lacuna muito importante”, observa Flávia Pilecco. “Em outro estudo qualitativo do qual participei, identificamos que homens que se autodeclaram héteros só se testam para o HIV quando acreditam ter sido expostos ao vírus, na triagem para doar sangue ou por ocasião do pré-natal e testagem das suas parceiras.”
Na visão de Daniel Zylbersztejn, é preciso ampliar as comunicações de uso de preservativo para além de certos grupos específicos. “Acredito que talvez o melhor caminho para garantir que toda a população seja protegida contra as infecções seja apostar em campanhas nichadas para cada um dos grupos sexuais”, avalia o urologista do Einstein. “Essa estratégia permitiria utilizar imagens e jargões que façam sentido para cada agrupamento e, assim, garantir que a mensagem realmente chegue até o público-alvo”.
Para a autora da pesquisa, o ideal seria apostar em estratégias que conversem com todos os cidadãos, adequando-as aos diferentes contextos sociais e culturais da população. “Para nós [autores do estudo], todos deveriam ser contemplados por ações de saúde, respeitando suas especificidades”, afirma Flávia Pilecco.
Outra medida importante seria incentivar o cuidado com a própria saúde masculina desde cedo. Da mesma forma que as meninas são estimuladas a ir ao ginecologista, os meninos devem ser levados a um urologista ou clínico geral de confiança. “Temos nos consultórios todos os materiais necessários para explicar a importância do sexo seguro e como praticá-lo”, assegura Zylbersztejn.