Pisar no solo considerado sagrado das Ruínas da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Natividade, é também uma forma de expressar o orgulho e o pertencimento à herança cultural negra. Dançar, nesse mesmo local, a suça — que mistura ritmos e elementos ancestrais dos nativitanos — é um ato que reúne imensuráveis saberes transmitidos por gerações. Por isso, o Governo do Tocantins, por meio da Secretaria de Estado da Cultura (Secult), realizou, nesta quinta-feira, 6, o evento “Novembro Negro: a cultura como caminho para conscientização”.
Nas ruínas da igreja, foi realizada uma roda de conversa com a participação de servidores da Secult e de outras secretarias do Estado, além do município de Natividade e de representantes de coletivos. Também ocorreram rodas de suça com grupos locais. O objetivo foi iniciar o mês de novembro promovendo momentos que propiciassem o fortalecimento da cultura negra, considerando a suça como uma expressão que preserva a identidade cultural e representa resistência.
No fim da tarde, crianças, jovens, adolescentes, adultos e idosos se reuniram para expressar uma das mais importantes heranças locais. A dança chama a atenção pelo batuque dos tambores e o toque da viola, harmonizados com instrumentos como a caixa e o atabaque. A sincronia dos passos dos dançarinos de diversas idades é um convite a participar da roda. É no balanço das saias que o movimento de cada um ganha vida.
Ancestralidade
Os anfitriões abriram os momentos de fala como forma de expressão da identidade local. Dona Felisberta Pereira é uma das mestras suceiras e responsável pelo grupo de Suça “Mãe Ana”. Ao iniciar a roda de conversa, ela frisou que cultura é rezar, cantar, falar, dançar, comer, mostrar e fazer a cultura acontecer.
“Aqui em Natividade, a gente não fala só de cultura. A gente fala das garrafadas, do rapé, dos xaropes, da multimistura, tudo isso faz parte da medicina caseira, dessa herança deixada pelos negros. E eu falo com muito orgulho: sou uma das herdeiras dessa tradição, porque tenho verdadeira paixão pela medicina caseira. A cultura, seja rezando, cantando, dançando ou mostrando o que a gente tem de bonito, a gente tem que mostrar. Isso é resistência: é continuar mesmo quando dizem que essa dança é coisa de negro e dizer com orgulho: é sim, e é linda. A nossa resistência é cantando, dançando e levando alegria!”.
Seu Belarmino Romão Ferreira, líder do grupo Catireiros de Natividade, também expressou alegria em carregar consigo a cultura nativitana herdada dos antepassados.”A catira, para mim, é uma música educativa. Todas as composições que eu fiz procuram orientar as pessoas sobre o meio ambiente, sobre a natureza. Eu canto muito a natureza, e meu objetivo é fazer com que as pessoas se conscientizem da necessidade da preservação, não só da fauna como da flora. É um pouco disso que tratam minhas composições. A gente enfrenta muitas barreiras, preconceitos. Mas temos que ter a consciência de que não somos inferiores, que o que fazemos representa uma categoria: a cultura de um povo, a nossa ancestralidade. Temos que erguer a cabeça e saber que estamos dando continuidade ao que nossos antepassados já vivenciaram. A nossa cultura também é muito rica!”, declarou o catireiro.
O mesmo sentimento é compartilhado pela jovem Iara Santana Rocha, 13 anos, integrante do grupo de Suça Tia Benvinda. “Sempre via meus amigos dançando e achava bonito. Depois que entrei, me apaixonei pela cultura. Agora não tenho mais vergonha nenhuma. Eu amo a minha cultura! O grupo é como uma segunda casa pra mim. Participar da cultura, mostrar e apresentar o que a gente faz é algo que me deixa muito feliz. Quando danço, me sinto alegre e em paz. É a minha calma, o meu jeito de ser feliz”, disse.
A professora e responsável pelo Ponto de Cultura Tia Benvinda, Verônica Tavares de Albuquerque, reforçou que a dança é identidade, pertencimento e resistência do povo negro. “Aqui, a gente está representando, por meio das nossas crianças, o poder que a cultura afro-brasileira tem. A palavra-chave é resistência, porque trabalhamos semanalmente, durante todo o ano, com as crianças, valorizando a nossa cultura e as tradições negras. Elas são encantadas e apaixonadas pela cultura. O nosso objetivo é valorizar e perpetuar essas tradições por muitos séculos. No Ponto de Cultura Tia Benvinda, a gente não trabalha apenas a dança. Primeiro, explicamos por que essa manifestação existe, o que ela significa. Cada verso, cada sapateado, conta a história do povo sertanejo, do nosso território”, afirmou.
Roda de Conversa
Na mesa de convidados, o superintendente de Fomento e Incentivo à Cultura da Secult, Antônio Miranda, frisou que o Governo do Tocantins tem priorizado ações de combate ao preconceito e de fortalecimento da cultura.
“Foi aqui, em Natividade, que tudo começou; aqui nasceu o Estado do Tocantins, e é aqui que essa cultura se manifesta de forma singular, colocando o fazedor de cultura no seu lugar de sujeito, de mestre que ensina, mas também resiste a muitas situações que ameaçam a continuidade dessa história e desse saber-fazer. E aqui, em Natividade, isso é símbolo, é marca. Falar em uma roda como essa é fácil, mas também é difícil, porque quem tem o conhecimento aqui são vocês. Nós estamos aqui muito mais para ouvir e aprender, porque os verdadeiros protagonistas são vocês, os fazedores de cultura. Os protagonistas da cultura não são os órgãos de governo, são os fazedores de cultura, os mestres, mestras e aprendizes que estão aqui”, destacou.
Para o secretário municipal de Cultura e Turismo de Natividade, Justino Pereira, a cultura se manifesta nos saberes, nos fazeres e nas tradições. “Quero manifestar o meu contentamento e a minha felicidade por estarmos aqui, recebendo um evento de tamanha importância, que também tem elo com o Dia da Consciência Negra, que tem tudo a ver com Natividade. A nossa cidade foi, fundamentalmente, construída pelas mãos de pessoas negras e, até hoje, todas as nossas manifestações culturais nos remetem aos nossos antepassados. A própria manifestação da suça é um exemplo disso: é uma dança que tem origem naquele tempo, nas experiências dos negros escravizados. Então, relacionar o Mês da Consciência Negra com Natividade é de grande coerência. Recebemos com felicidade essa valorização da nossa cultura, porque a palavra ‘preservação’ combina muito com Natividade”, comentou.
Um alerta sobre os tipos de preconceito e as diversas formas de viver a cultura negra foi feito pelo diretor de Fomento e Proteção da Cultura Afro-Brasileira da Secretaria de Estado da Igualdade Racial (Seir), Ênio Sales de Oliveira.
“É meu dever assegurar que essa cultura seja não só valorizada, mas que tenha um plano efetivo de política, para que isso não seja apenas uma ação em novembro, e sim algo contínuo. A nossa identidade negra, não só aqui no Tocantins, é formadora de uma civilização que chamamos de ‘sexta parte da África’. Somos o povo afrodiaspórico, estamos espalhados pelo mundo todo. A nossa cultura tem uma matriz pulsante e a nossa missão é propagar essa alegria de existir por diferentes meios, seja por atos normativos, seja pela Constituição, que, nos artigos 215 e 216, assegura a valorização e a preservação da cultura afro-brasileira e da cultura nacional. Dito isso, o problema central que nos traz aqui hoje é refletir, a partir da cultura, sobre como enfrentar o racismo”, ressaltou.
A secretária-executiva da Secretaria de Estado da Mulher, Warner Macedo Camargo, reforçou a importância da união entre instituições pela preservação da cultura local. “Essas ruínas são parte da nossa memória. Elas representam a cultura e guardam histórias de tantas vidas de pessoas escravizadas que se foram para construir esse lugar. Natividade já foi uma das cidades mais povoadas do antigo norte de Goiás e, até hoje, mantém viva a tradição e a cultura. É por isso que eu sempre gosto de cumprimentar e reconhecer os antigos daqui, que são os guardiões dessa herança”, enfatizou.
Também participaram do evento e compuseram a mesa de debates a gerente de Convênios e presidente da Comissão de Editais da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), Simone Moura; a presidente da Associação Cultural de Natividade (Ascuna), Simone Camelo; e o professor e escritor Wátila Misla. Da Secult, ainda estiveram presentes o gerente de Desenvolvimento da Cultura, Luciano Pereira, e a gerente de Fomento, Planejamento e Parcerias Culturais, Savana Sanches.
Apresentações de Suça
Além da interação do público presente, as apresentações dos grupos Tia Benvinda e Mãe Ana finalizaram o evento. Nas ruínas, crianças, jovens e adultos se uniram em uma expressão cultural única e com um só objetivo: demonstrar amor pela suça e pela cultura herdada dos antepassados.
Sob a Bandeira do Divino e em oração, o evento foi encerrado com sentimento de pertencimento, reforçando a importância dos debates e manifestações que combatem qualquer tipo de preconceito.







