Um dilema de longa data na medicina preventiva — comparar a efetividade das duas estratégias de rastreamento do câncer colorretal mais usadas no mundo — foi testado em um grande ensaio clínico pragmático, randomizado e controlado realizado em 15 hospitais terciários de oito regiões da Espanha.
Chamado de COLONPREV, o estudo não buscava provar que um método é melhor, mas sim demonstrar que o Teste Imunoquímico Fecal (FIT, na sigla em inglês) — que avalia sangue oculto nas fezes — não é clinicamente pior do que a colonoscopia, considerada “padrão-ouro” para rastreamento de câncer colorretal
Publicado na revista científica The Lancet, o COLONPREV foi coordenado pelos médicos Antoni Castells, do Hospital Clínic de Barcelona, e Enrique Quintero, do Hospital Universitário das Ilhas Canárias. Realizado entre 1º de junho de 2009 e 31 de dezembro de 2021, o ensaio envolveu 57.404 indivíduos convidados.
Robusto e revolucionário, o trabalho confirmou a hipótese dos autores de que programas baseados em teste de fezes de laboratório funcionam tão bem quanto programas baseados em colonoscopia completa para reduzir a mortalidade por câncer colorretal, oferecendo uma alternativa mais viável.
Os números do estudo mostraram diferenças muito pequenas no risco de mortalidade em 10 anos: a colonoscopia apresentou 0,22% de risco (55 mortes), enquanto o FIT mostrou 0,24% (60 mortes). A diferença de apenas 0,02% (5 mortes a mais) é considerada “não inferior” por ser clinicamente insignificante.
Colonoscopia e sangue oculto nas fezes: principais diferenças

O estudo espanhol demonstrou diferenças significativas na participação entre os métodos de rastreamento. Enquanto 39,9% dos participantes enviaram kits FIT pelo correio, apenas 31,8% compareceram para colonoscopias agendadas. Essa disparidade comprova um padrão global de preferência pelo método menos invasivo.
Os dois métodos de rastreamento apresentam diferenças substanciais em questão de custos: enquanto o FIT domiciliar custa cerca de US$ 24 (R$ 130) segundo o Medicare americano, as colonoscopias totalizam US$ 635 (R$ 3.450) quando incluídos os custos da infraestrutura médica.
Outro quesito que diferencia drasticamente os métodos é a conveniência. A colonoscopia exige dieta líquida restritiva, uso de laxantes potentes, transporte especializado e tempo de recuperação pós-procedimento. Mais prático, o FIT requer apenas minutos no banheiro doméstico e um envelope pré-pago para envio.
Quanto à eficiência diagnóstica, a colonoscopia sai na frente, pois oferece uma vantagem terapêutica imediata por permitir aos médicos remover pólipos suspeitos durante a mesma sessão diagnóstica. Resultados FIT positivos, por sua vez, desencadeiam colonoscopias para completar a investigação.
Finalmente, o paciente precisa escolher entre a vantagem de o FIT ser isento de efeitos colaterais (mesmo podendo necessitar de uma colonoscopia posterior) contra a decisão de ter resolução imediata, mas aceitar pequenos riscos, como inchaço temporário e até algumas (raras) complicações graves.
O que dizem os médicos?

No contexto brasileiro, que ainda não possui um programa nacional organizado de rastreamento, os resultados do estudo COLONPREV trouxeram importantes reflexões sobre as estratégias de rastreamento do câncer colorretal.
Para Alexandre Carlos, coordenador do Centro Diagnóstico de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da USP, “o sangue oculto nas fezes [SOF] passa a ser uma excelente alternativa inicial para pessoas assintomáticas de risco médio, especialmente em cenários com limitação de recursos”.
Em entrevista à CNN Brasil, o especialista em Doença Inflamatória Intestinal explicou que, por ser viável, custo-efetiva e escalável, a abordagem permite “que o sistema de saúde amplie rapidamente a cobertura populacional, com menor necessidade de infraestrutura complexa como centros de colonoscopia”.
Além disso, o teste de SOF, por ser não invasivo, indolor e de fácil coleta domiciliar, resolve alguns dos principais obstáculos à colonoscopia, que incluem, segundo Alexandre, “medo do exame, desconforto com o preparo intestinal, necessidade de anestesia e tempo de afastamento do trabalho”.
Contudo, faz um alerta: “A colonoscopia continua sendo recomendada como opção inicial prioritária em pessoas com histórico familiar de câncer colorretal, doenças inflamatórias intestinais (como retocolite ulcerativa ou doença de Crohn extensa), síndromes hereditárias (como polipose familiar ou síndrome de Lynch) ou achados prévios de pólipos avançados”.
Indagado sobre eventuais mudanças nas diretrizes nacionais com base no COLONPREV, o especialista lembrou que, como o SOF já é oferecido hoje, como alternativa em muitos casos, a mudança seria apenas a padronização nacional. “Do ponto de vista clínico, é uma adaptação tranquila e bem-vinda”, conclui.