“Se um criador brasileiro não quiser usar o sangue do Karvadi no seu rebanho nelore vai ter que ir buscar material na Índia.” Na frase, o médico-veterinário e pecuarista de terceira geração Arnaldo Manuel de Souza Machado Borges, o Arnaldinho, faz menção ao touro que foi importado da Índia em 1962 e é considerado por especialistas e criadores o principal formador (genearca) da raça zebuína no país. Hoje, mais de 80% do rebanho bovino brasileiro, de 235 milhões de cabeças, é da raça.
Segundo dados da diretoria da centenária Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ), dos 15 milhões de animais registrados como puros de origem, 13 milhões têm Karvadi no pedigree. Na citação dos números, Arnaldinho, vice-presidente da entidade, e o atual presidente, Gabriel Garcia Cid, baseiam-se em trabalho feito quando Arnaldinho atuava como técnico da ABCZ e fez mais de 300.000 acasalamentos de matrizes nelore.
“Analisando as fichas com a genealogia de cada matriz, concluí que cinco touros tiveram uma participação maior no pedigree do nelore brasileiro. Karvadi foi de longe o maior reprodutor. Os outros quatro do ranking tinham Karvadi no pedigree”, relata Arnaldinho. Além disso, quando foi presidente da ABCZ, o pecuarista constatou que todos os animais que participaram dos julgamentos na Expozebu nas edições do intervalo entre 2017 e 2019 tinham o sangue de Karvadi, assim como todos os touros mais bem avaliados no Programa de Melhoramento Genético de Zebuínos (PMGZ) da ABCZ.
No Brasil, Karvadi viveu em Araçatuba (SP) até 1972, quando, aos 17 anos, sem conseguir se sustentar sobre as próprias pernas, precisou ser sacrificado. O animal foi embalsamado na Inglaterra como um faraó, e hoje está exposto no Museu do Zebu, em Uberaba (MG), onde é a maior atração para os cerca de 40.000 visitantes anuais.
Atualmente, a maioria dos touros com sêmen coletado nas centrais tem no pedigree a presença dos reprodutores Rambo, Quark, Provador IZ e Backup, todos com sangue Karvadi. As vacas mais caras do mundo, Carina FIV do Kado e Viatina-19, avaliadas em R$ 24 milhões e R$ 21 milhões, respectivamente, também têm o sangue do indiano lendário.
Karvadi, que já era um grande reprodutor idolatrado na Índia, não foi o único touro que o Brasil importou do país asiático em 1962. Os enviados de Torres Homem Rodrigues da Cunha, dono da marca VR (iniciais do nome de seu pai, Vicente Rodrigues da Cunha), viajaram com três outros criadores: Rubens Andrade Carvalho, o Rubico; Veríssimo Costa Jr, o Nenê Costa; e Celso Garcia Cid, avô do atual presidente da ABCZ. A sede da entidade, em Uberaba, abriga bustos dos quatro importadores, que foram os últimos a trazer zebuínos vivos da Índia.
Nelore ideal
Mas, afinal, por que Karvadi teve tanto destaque? Segundo Arnaldinho, o animal representa, até hoje, o ideal do padrão do nelore em todas as características raciais e funcionais. Ele tinha um aparelho reprodutor perfeito, eficiência na monta, altura e aprumo correto (mesma distância entre os membros inferiores e posteriores, formando um retângulo perfeito). “As filhas de Karvadi, de alta fertilidade e habilidade materna, foram responsáveis pela base genética de vários rebanhos”, diz ele, que visitou a Índia com uma delegação em 1998.
Segundo o vice-presidente da ABCZ, embora a população da maioria das regiões do território indiano não consuma carne bovina, por razões religiosas, todos consomem leite, inclusive do nelore. Os animais são submetidos a intensos cuidados sanitários no país, onde passam por rigorosa seleção há centenas de anos.
Arnaldinho tinha 11 anos quando viu Karvadi e os outros animais importados desfilarem com festa e foguetório na chegada a Uberaba. Nos anos 1980, ele passou duas semanas na fazenda de Torres Homem em Araçatuba com técnicos da ABCZ para registrar animais. Nesse período, conta, conviveu muito com o criador e seu peão mais valioso, José da Silva, o Dico, selecionador de nelore responsável pela descoberta de Karvadi na Índia e que dizia que o touro chegava a montar três vacas por dia.
O peão morreu há alguns anos. No documentário “Torres, Dico e Karvadi” ele contou que, quando viu a foto de Karvadi com o primeiro-ministro indiano em uma repartição pública do país, logo se apaixonou e perguntou se aquele touro existia. Ele achava que iria trazer para o Brasil uns dez touros iguais a Karvadi e mais 30 vacas.
“Dico mandou cartas e fotos para o meu pai dizendo que tinha achado uma pérola e que, se todos os touros fossem daquele jeito, a viagem já estava paga. Mas Karvadi era único. Era o Pelé dos touros indianos”, disse à Globo Rural José Carlos Prata Cunha, filho mais novo de Torres Homem.
Torres Lincoln Prata Cunha, o sexto filho, contou que seu irmão mais velho, Joaquim Vicente, e sua avó Olinda, viúva e então com 75 anos, também foram à Índia em 1962 ajudar nos trâmites necessários para a compra de Karvadi. E a missão não foi simples. A avó levou um anel de rubi e brilhantes para “bajular” o veterinário, que não queria liberar o animal. O pai vendeu um prédio de 12 andares em Belo Horizonte para bancar a viagem e a compra dos animais indianos.
O neto Rodrigo Musa da Cunha, filho de Joaquim Vicente, descreve seu avô como um visionário. “Era um homem muito à frente do seu tempo. Ele se formou em zootecnia e sempre foi apaixonado por criação de animais. Logo percebeu que a raça nelore era muito mais produtiva, adaptada e funcional em qualquer tipo de sistema de produção.”
Sêmen de Karvadi é usado até hoje
Quando Torres Homem faleceu, em 2010, deixou como herança para os sete filhos, além de fazendas e animais puros de origem, ampolas com sêmen de Karvadi. “Eu tenho as minhas doses até hoje. Meu irmão Vicente Rodrigues produziu recentemente um bezerro que já é considerado um fenômeno e foi vendido por um bom preço em leilão”, diz José Carlos.
A Central de Inseminação VR, administrada por José Carlos após a morte do pai, associou-se à Alta Genetics em 1996 para distribuir sêmen no Brasil. A parceria durou 11 anos e terminou com a saída da família do negócio. Todos os filhos, no entanto, seguiram o pai e são criadores de zebu puro de origem com a marca VR.
O estoque de sêmen congelado de Karvadi é hoje muito pequeno, conta Lincoln. Ele mesmo teve que comprar uma ampola por R$ 35.000 para fazer uma transferência de embrião. Ninguém arrisca estimar quanto Karvadi valeria hoje se fosse vivo. “O valor é incalculável, mas meu avô não venderia esse touro por dinheiro nenhum”, frisa Rodrigo.
O pecuarista Paulo Leonel, que cria gado puro e comercial em suas fazendas em Nova Crixás (GO) e Ribeirão Preto (SP), ainda mantém e usa o sêmen congelado de Karvadi. “Comprei as doses da VR do senhor Torres há muitos anos. Faço crias todo ano desse touro, que é o Pelé da raça. Tenho dois filhos de Karvadi na Central de Inseminação Bela Vista e várias filhas na minha fazenda”, diz o pecuarista.
Há três anos, Paulo vendeu em leilão o touro Bolívar, produzido com o sêmen de Karvadi, por um “bom preço”. O pecuarista ainda tem oito doses do sêmen, volume suficiente para mais de 100 crias do genearca da raça.