Um artigo publicado recentemente na revista Nature Metabolism apresenta um medicamento experimental que estimula as células do tecido adiposo a gastar energia para produzir calor – processo conhecido como termogênese –, promovendo assim a perda de peso. Em testes com animais, o composto se mostrou capaz tanto de prevenir o acúmulo de gordura diante de uma dieta rica em lipídeos quanto de tratar a obesidade já instalada e reverter as disfunções metabólicas associadas, entre elas a resistência à insulina. Resultados preliminares da pesquisa clínica indicam que a substância é segura e sugerem que também em humanos pode haver efeitos benéficos para o metabolismo.
“Observamos perda de peso e melhora da glicemia nos voluntários obesos que participaram do ensaio clínico de fase 1. Mas esse resultado não é conclusivo, pois foi um grupo pequeno e o objetivo era avaliar se o composto é seguro e bem tolerado. Pretendemos iniciar ainda este ano o estudo de fase 2 – este sim desenhado para testar a eficácia no tratamento da obesidade”, conta à Agência FAPESP Carlos Escande, pesquisador do Institut Pasteur de Montevideo (Uruguai) e coordenador da pesquisa.
Por ora denominado SANA (do inglês salicylate-based nitroalkene), o fármaco experimental é um derivado do salicilato – composto químico com propriedades analgésicas e anti-inflamatórias encontrado naturalmente em plantas e que deu origem a medicamentos como a aspirina (ácido acetilsalicílico). Segundo Escande, seu grupo buscava inicialmente desenvolver uma droga com ação anti-inflamatória. E para isso testou diversas modificações químicas na molécula de salicilato.
“Queríamos que o precursor utilizado fosse o mais seguro possível. E o salicilato é a droga que se conhece há mais tempo, muitas pessoas consomem seus derivados diariamente. Contudo, observamos que, em vez de proteger contra a inflamação, a molécula que sintetizamos protege contra a obesidade induzida por dieta”, diz o pesquisador.
Dois modelos diferentes foram usados para testar esse efeito em animais. No primeiro, SANA começou a ser administrada a camundongos ao mesmo tempo que a dieta rica em gordura e preveniu totalmente o ganho de peso, enquanto os animais do grupo-controle engordaram entre 40% e 50% ao longo de oito semanas. No segundo, o tratamento começou quando os animais já estavam obesos. Após três semanas, verificou-se uma perda de 20% da massa corporal, além de redução da glicemia, melhora da sensibilidade à insulina e diminuição da gordura acumulada no fígado (esteatose hepática, condição para a qual ainda não há um tratamento farmacológico eficaz).
“First-in-class”
O passo seguinte foi investigar o mecanismo de ação da substância, tarefa com a qual colaboraram nove pesquisadores brasileiros: Marcelo Mori, Pedro Vieira e Larissa Menezes dos Reis, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); William Festuccia e Luiz Osório Leiria, da Universidade de São Paulo (USP); Juliana Camacho-Pereira, Marina Santo Chichierchio, Gabriele Barbosa e Leonardo de Souza, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Essa etapa contou com apoio da FAPESP por meio de três projetos.
Os experimentos mostraram que SANA atua especificamente no tecido adiposo e ativa a termogênese por um mecanismo não convencional, podendo ser considerada “first-in-class”, ou seja, a primeira de uma nova classe de drogas antiobesidade. Não há ação no sistema nervoso central ou digestivo, nem efeito sobre o apetite.
Como explicam os autores, a termogênese normalmente é mediada por uma proteína existente dentro da mitocôndria (a organela que gera energia para as células) chamada UCP1, que é ativada em determinadas situações – como a exposição ao frio, por exemplo – e interfere na síntese de ATP (trifosfato de adenosina, o combustível celular), fazendo com que a energia gerada pela respiração celular seja dissipada na forma de calor. Mas este não é o caso de SANA. O novo fármaco faz com que os adipócitos usem a creatina (um composto formado por três aminoácidos: arginina, glicina e metionina) como fonte de energia para produzir calor, sem qualquer participação da proteína UCP1.
“Fizemos testes com camundongos deficientes para a UCP1 [modificados geneticamente para não expressar a proteína] e comprovamos que SANA ativa a termogênese nesses animais mesmo na ausência de UCP1 e em condição de termoneutralidade, ou seja, sem exposição ao frio”, conta William Festuccia, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
Segundo o pesquisador, o impacto na temperatura corporal observado é pequeno e não representa risco significativo à saúde. “Termogênicos mais antigos, como dinitrofenol, têm efeito sobre as mitocôndrias do corpo inteiro, causando uma grande elevação da temperatura e sobrecarga ao sistema cardiovascular, que precisa aumentar a pressão arterial para o sangue chegar à periferia e dissipar o calor. Mas, no caso de SANA, só há ação nas mitocôndrias do tecido adiposo”, explica.
Em experimentos coordenados por Marcelo Mori no Instituto de Biologia da Unicamp, confirmou-se que SANA atua sobre enzimas envolvidas no chamado “ciclo fútil da creatina”, mecanismo termogênico em que o composto de aminoácidos é repetidamente convertido em fosfocreatina e volta a ser creatina, consumindo ATP e dissipando energia sob a forma de calor.
“O fato de ser uma molécula pequena e de agir por um mecanismo totalmente diferente permite a combinação de SANA com outras substâncias já usadas no tratamento da obesidade, como os análogos de GLP-1 [semaglutida e similares]”, avalia Mori. “Quando reduzimos a ingestão de alimentos, nosso corpo tende a diminuir o metabolismo. Para evitar esse efeito platô, seria interessante aliar uma molécula que inibe o apetite a outra que promove o gasto calórico.”
Apesar de eficazes no combate à obesidade e no controle glicêmico, acrescenta Marcelo, os análogos de GLP-1 tendem a promover também a perda de massa magra, algo problemático principalmente para idosos. “Por isso é importante ter alternativas”, destaca.