Pesquisadores do Canadá conseguiram modificar um rim humano do tipo sanguíneo A para o tipo O, considerado universal, e o transplantaram em um paciente com morte cerebral para estudar os resultados.
O procedimento, detalhado na revista Nature Biomedical Engineering em 3 de outubro, representa um passo importante para reduzir a longa fila de espera por transplantes e aumentar as chances de compatibilidade entre doadores e receptores.
A pesquisa usou enzimas para remover moléculas chamadas antígenos da superfície das células, que são as responsáveis por desencadear a rejeição. O processo, conhecido como conversão enzimática de órgãos, transforma tecidos em potenciais doadores universais.
Embora o órgão convertido tenha funcionado por apenas dois dias antes de sinais de rejeição, o resultado foi considerado promissor, já que esse tipo de reação costuma acontecer imediatamente quando há incompatibilidade sanguínea.
O que significa um órgão com tipo sanguíneo universal?
A médica nefrologista Flávia Gonçalves, do Hospital Sírio-Libanês, em Brasília, explica que um órgão com tipo sanguíneo universal é aquele que pode ser aceito por qualquer paciente. “Isso acontece porque o tipo O não apresenta os antígenos A ou B, que são as principais estruturas reconhecidas pelo sistema imunológico como estranhas”, diz.
Segundo ela, a possibilidade de tornar um órgão compatível com diferentes receptores é um avanço que pode mudar a forma como os transplantes são realizados.
“Hoje, a incompatibilidade sanguínea é um dos principais fatores que limitam a realização de transplantes. Ao transformar um rim do tipo A em O, ampliamos muito o número de pacientes que podem receber esse órgão”, afirma.
A mudança também teria efeito direto na eficiência dos sistemas de alocação de órgãos. Com mais compatibilidade entre doadores e receptores, há menos desperdício de órgãos e redução do tempo de espera, o que pode salvar muitas vidas.
Desafios além da incompatibilidade
A incompatibilidade sanguínea é apenas um dos fatores que dificultam os transplantes renais. Outros aspectos também precisam ser avaliados para que o órgão seja aceito pelo corpo do paciente. Um deles é o sistema HLA, um conjunto de proteínas que funciona como uma espécie de “código de identidade” do sistema imunológico. “Quanto mais parecido esse código for entre o doador e o receptor, menores são as chances de rejeição”, detalha a médica.
Ela acrescenta que o organismo do receptor pode desenvolver anticorpos ao longo da vida por causa de transfusões de sangue, gravidez ou transplantes anteriores, e isso aumenta o risco de o corpo rejeitar o novo órgão. Além disso, o tempo de transporte, o cuidado na preservação do rim e as condições clínicas do paciente também influenciam o sucesso do procedimento.
O nefrologista Álvaro Pacheco, da equipe de transplante renal do Hospital Israelita Albert Einstein e diretor científico da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), reforça que o estudo canadense é um avanço nesse cenário.
“A compatibilidade sanguínea é a primeira barreira que analisamos antes de um transplante. A técnica pode ajudar a ultrapassar esse obstáculo e aproveitar órgãos que antes não poderiam ser usados”, afirma.
Como funciona a técnica ECO
A técnica ECO, sigla para conversão enzimática de órgãos, usa enzimas específicas para retirar os antígenos do tipo A da superfície das células. O processo é feito em máquinas de perfusão, que mantêm o órgão irrigado e preservado fora do corpo.
Em tese, o método também poderia ser aplicado a outros órgãos, como fígado e pulmão, mas isso ainda precisa ser estudado. “O grande desafio é garantir que a remoção dos antígenos seja completa e duradoura. No estudo, eles voltaram a aparecer alguns dias depois, o que levou à rejeição do órgão”, explica Pacheco.
Mesmo assim, ele vê o resultado como um avanço. “É um primeiro passo muito importante. Com novos ajustes e tratamentos, talvez consigamos manter o órgão funcionando por mais tempo no futuro”, afirma.
Brasil tem potencial
Para Flávia, o Brasil tem capacidade científica e tecnológica para participar de pesquisas semelhantes. “Temos centros de excelência, como USP, Unicamp, Fiocruz e o Instituto do Coração, com histórico em transplantes e biotecnologia. O desafio está na infraestrutura e no financiamento necessários para aplicar a técnica em larga escala”, avalia.
Segundo ela, o país precisaria investir em laboratórios certificados, equipamentos de perfusão e parcerias com centros internacionais para avançar nessa área.
Pacheco reforça que o Einstein já possui o equipamento usado no estudo e poderia realizar testes semelhantes caso a enzima utilizada estivesse disponível. “Isso mostra que o Brasil está tecnicamente preparado, mas ainda dependemos de acesso à tecnologia e de aprovação regulatória”, afirma.
A expectativa é que, no futuro, a técnica ajude a reduzir as filas de transplante e aumente as chances de pacientes receberem um órgão compatível.