Após serem condenados na Primeira Turma do STF (Supremo Tribunal Federal), Jair Bolsonaro (PL) e outros militares devem responder a processo em outra Corte do Judiciário: o STM (Superior Tribunal Militar).
Capitão reformado, Bolsonaro foi condenado a uma pena de 27 anos e três meses de prisão por tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, entre outros crimes relacionados a um plano de golpe de Estado contra o resultado da eleição presidencial de 2022, da qual saíra derrotado para o atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Além do ex-presidente, também foram condenados:
- o general da reserva Walter Braga Netto, vice na chapa de Bolsonaro em 2022: pena de 26 anos de prisão;
- o almirante da reserva Almir Garnier, ex-comandante da Marinha: 24 anos;
- o general da reserva Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa: 19 anos;
- o general da reserva Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI): 21 anos;
- e o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens presidencial: dois anos em regime aberto.
Competência
A Primeira Turma do STF determinou que a Justiça Militar seja oficiada para avaliar uma eventual “indignidade para o oficialato” em relação a Bolsonaro, Braga Netto, Garnier, Paulo Sérgio e Heleno.
O STF pode julgar tanto civis como militares quando se fala em crimes da alçada da Justiça Comum, mas somente a Justiça Militar pode definir uma eventual perda de patente de oficiais.
A Constituição de 1988 estabelece que um militar condenado a pena privativa de liberdade superior a dois anos, com sentença transitada em julgado (ou seja: sem mais possibilidade de recursos), deve ser submetido a um julgamento em instância militar para avaliar se ele é “indigno” ou “incompatível” com o oficialato, o que poderia levá-lo a perder seu posto e patente nas Forças Armadas.
Assim, entre os militares condenados no STF por golpe de Estado, apenas Mauro Cid, que foi colaborador no processo e, mediante acordo, recebeu uma pena de dois anos, escaparia de perder sua patente por meio de processo iniciado pela comunicação do Supremo ao foro militar.
Processo
A primeira etapa para o processo militar começar a tramitar é o MPM (Ministério Público Militar), ao ser oficiado sobre o desfecho do julgamento no STF, representar contra os condenados no STM.
“No STM, o processo é autônomo: a Procuradoria-Geral da Justiça Militar se manifesta, os réus apresentam defesa, e o caso é julgado pelo Plenário da Corte, composto por 15 ministros — 10 oficiais-generais das Forças Armadas e cinco civis. Não há prazo fixo, mas a tramitação costuma demandar alguns meses”, explica o professor Fernando Capano, especialista em Direito Militar.
Mesmo oficiais já na reserva e reformados — sendo o caso dos cinco militares — estariam sujeitos a passar pelo processo e, assim, perder suas patentes, segundo afirmação da presidente do STM, ministra Maria Elizabeth Rocha, em palestra no final de agosto, em São Paulo.
“E perde, ainda, todas as prerrogativas militares”, disse, na época, antes de o STF definir qualquer condenação ou penalização contra os réus.
A palestra de Maria Elizabeth, durante o Seminário Internacional de Ciências Criminais, promovido pelo IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), tratava exatamente de como o STM deveria atuar diante de crimes contra o Estado Democrático de Direito.
No mesmo evento, Maria Elizabeth frisou que o julgamento na Justiça Militar não deve entrar no mérito da condenação no STF.
“Limita-se a aferir a presença de requisitos morais para a permanência do oficial na caserna, não cabendo ao Superior Tribunal Militar emitir juízo de valor sobre o acerto ou o desacerto da condenação previamente imposta e tampouco verificar vícios porventura nela existentes”, acrescentou.
Prerrogativas
Os direitos e prerrogativas previstos no Estatuto dos Militares vão além das patentes e da permissão para uso de títulos, uniformes e distintivos, e incluem também o direito para porte de armas e a possibilidade de cumprir pena de prisão em organização militar.
“A perda da patente tem efeitos concretos: o condenado deixa de integrar a estrutura militar e, a rigor, poderá, sim, perder a prerrogativa de cumprir pena em estabelecimento prisional castrense, podendo passar a cumprir pena no sistema penitenciário comum”, afirma Capano.
Porém, o professor pondera que, no caso específico de Bolsonaro, o capitão reformado ainda escaparia do sistema penitenciário comum, dada sua condição de ex-presidente da República. “Assim, sua eventual prisão já se daria em regime especial de custódia”, acrescenta.
Outra prerrogativa de militares reformados e transferidos para a reserva é seguir com remuneração mensal. Bolsonaro, por exemplo, recebe cerca de R$ 12,8 mil brutos (desconsiderando descontos e também ganhos eventuais, como gratificações). Almir Garnier, R$ 37,6 mil.
Em casos de militares expulsos ou demitidos das Forças Armadas, se utiliza a caracterização de “morte ficta”, quando o militar é considerado morto e, assim, sua remuneração se transforma em pensão destinada à sua família.
Em agosto, o TCU (Tribunal de Contas da União) decidiu que este direito à pensão militar no caso de oficiais expulsos e demitidos não deve existir e recomendou a alteração de legislação que forneça base legal ao mecanismo.
Um projeto desenhado pelo Ministério da Fazenda em linha com a pasta da Defesa que acabaria com o mecanismo chegou a ser protocolado na Câmara dos Deputados no final do ano passado, mas, em meio a resistências entre parlamentares egressos da caserna, não teve avanços na Casa desde então.
Menos de dois anos
No mesmo evento em São Paulo, Maria Elizabeth frisou que militares condenados a uma pena de até dois anos — como se tornaria o caso de Mauro Cid — também podem perder suas patentes, mas por meio de outro processo: o Conselho de Justificação.
O Conselho de Justificação é um processo administrativo militar e está previsto pela Lei 5.836/1972. Uma ordem para sua instauração poderia ocorrer via ministro da Defesa ou pelos chefes das Forças Armadas.
“Caso o militar já esteja na reserva ou reformado e não for justificado (ser absolvido pelo conselho), ele perderá, também, nesta situação, o posto e a patente para o oficialato, sendo excluído definitivamente das Forças Armadas”, esclareceu a presidente do STM.