Eles viram os filhos hipnotizados pela tela do celular, tentaram falar sobre a importância de ler livros e até mostraram o próprio exemplo, mas nada surtia efeito. Então, resolveram “apelar” para uma estratégia: dar uma mesada aos filhos a cada livro lido.
A “recompensa” financeira para estimular o hábito de leitura e, ao mesmo tempo, tirar os filhos da tela depende de cada família. A ideia dos pais que adotaram a prática é criar o hábito aos poucos até o ponto de parar de oferecer o dinheiro.
Especialistas ouvidos pelo UOL dizem que a tática precisa ser adotada com cautela, pois pode passar uma “mensagem negativa” às crianças e adolescentes. Os próprios pais reconhecem que a iniciativa não é a ideal, mas comemoram alguns avanços.
‘Paguei R$ 30 para filho ler livro’
Filho de Mariana Maciel, 37, Pietro, de 12 anos, precisou do incentivo para largar um pouco as telas, e voltar a se interessar pela leitura. Até os 8 anos, o garoto gostava de brincar na rua ou em casa. Com o tempo, as coisas mudaram.
Mariana se separou do marido e viu as telas como aliadas quando estava sozinha com a criança.
As telas eram uma válvula de escape até para que eu pudesse tomar banho com mais tranquilidade. Sabia que ele ficaria ‘preso’ na frente da televisão ou do celular. Além disso, com o excesso de trabalho e de estudos, me vi dispondo de telas para que ele pudesse se entreter. Mariana Maciel
Quando percebeu que o filho não se interessava mais pelas leituras noturnas ou qualquer outro tipo de livro, como gibis, Mariana, que trabalha com educação inclusiva em São Leopoldo (RS), pensou em oferecer a mesada de outra maneira ao filho.
Estava pensando em dar uma mesada para ele gastar com bobeiras, então pensei: Por que não unir o útil ao agradável? Ele já receberia uma pequena bonificação sem ‘fazer nada’. Mariana Maciel
Pietro se empolgou com a ideia: R$ 30 a cada livro. O combinado mudava de acordo com o tamanho do livro. Os dois organizaram uma meta diária de páginas ou capítulos.
“No primeiro e segundo livro, ele quase desistiu, mas, quando viu que era bonificado, isso o estimulava.”
Mariana explica que, inicialmente, a mesada era usada para comprar “as bobagens” dele, mas, depois, ele passou a optar pelos livros. “Ele queria completar uma coleção, do ‘Diário de um banana’.”
Logo, o Pietro pegou gosto pela leitura, que segue até hoje, dentro do campo de interesse dele. Aos poucos, percebo que ele aperfeiçoou a leitura. Mariana MacielContinua após a publicidade
A mãe conta que o tempo de cada tarefa fica dividido, incluindo leitura e telas (limitadas a 3 horas por dia).
Quando o celular dele bloqueia pelo limite, fica entediado e vai ler. Hoje, é um ótimo aluno, se expressa bem e tem bom vocabulário. Penso que, com equilíbrio, pode funcionar bem.Mariana Maciel
Mariana sabe que a estratégia só deu certo porque foi feita de maneira temporária e cuidadosa. “O foco não ficou na recompensa. O dinheiro funcionou apenas como gatilho para que pudesse descobrir os benefícios da leitura e o prazer do conhecimento.”
Atualmente, Pietro não recebe mais bonificação para ler. A tática durou menos de um ano.
‘Não sou idealista’
Quem teve a mesma ideia foi Tiago Rocha, 40, quando a filha passou a ficar muito tempo nas telas. “Elas são muito sedutoras. E tudo piorou na pandemia”, conta o especialista em marketing digital do Rio.Continua após a publicidade
Ele quis unir leitura e educação financeira. O pai de Beatriz, 11, oferecia R$ 10 para livros de 200 páginas, e R$ 20 para os de 300 páginas.
Cerca de 20% a 30% do valor que ela ia acumulando era guardado na “caixinha” dela, explica Tiago. Inicialmente, a garota gastava com doces, mas, com o tempo, Beatriz usava apenas com novos livros.
Acho que deu muito certo. No início, ela tinha uma meta de 10 páginas por dia. Depois, passamos para 15 e 20. Hoje, após mais de um ano, não preciso mais monitorar isso.Tiago Rocha
Tiago lembra um episódio que deixou claro que o hábito da leitura tinha sido criado. Eles queriam fazer uma festa de aniversário em um sítio, mas, para conseguir fechar o orçamento, o valor da mesada foi cortado —o que incluía os “bônus” dos livros.
Disse que iria suspender o dinheiro, mas ela não parou de ler.Tiago RochaContinua após a publicidade
Para ele, a estratégia só deu certo depois de mais ou menos um ano: “Confirmei depois que cortei o dinheiro, na metade deste ano, e ela continuou lendo.”
Os favoritos da filha são os livros da série “Artemis Fowl”, “Harry Potter” e “Uma Princesa Desastrada” —que foi, inclusive, tema da festa de aniversário.
Sobre possíveis críticas à iniciativa, Tiago não se importa e nem se arrepende: “Não sou idealista. Tentei algo que achava que daria certo.”
Minha filha está lendo melhor e os resultados da escola, que nunca foram ruins, só melhoraram. Ela também está aprendendo a lidar com dinheiro. Estou feliz, ela está feliz. Aliás, acho que não daria certo com todos. Trabalho em home office desde 2018, então tenho tempo e vontade de acompanhar minha filha.Tiago Rocha
‘Com uma filha deu certo, com a outra, não’
Já a diretora de escola Virgínia Madureira Abreu, 42, tem dois exemplos em casa. A estratégia, adotada anos atrás, deu certo para uma das filhas e, com a outra, não.Continua após a publicidade
Rafaela, 18, e Manuela, 16, passavam boa parte do tempo vendo TV ou jogando videogame.
“Então, propus que, se elas lessem livros, daria um trocado, coisa de R$ 10. Também pedia um resumo para ver se elas realmente tinham lido.”
O combinado era escolher livros da biblioteca da cidade, em Poços de Caldas (MG). Rafaela se empolgou e lia um livro a cada dois dias, mais ou menos. “Aí começou a ficar puxado para mim”, diz Virgínia.
Com a Rafaela funcionou, com a Manu, não. Mesmo pagando e incentivando, falando da importância da leitura e vendo a irmã ler, ela não se interessou.Virgínia Madureira Abreu
“A Rafa realmente gosta de ler e de ganhar livros de presente”, diz. A diretora de escola sabe que podem existir críticas à ideia, mas foi a forma que encontrou.Continua após a publicidade
Em um sistema consumista, muitos pais, exageradamente, dão aos filhos celulares, maquiagem, brinquedos, roupas —que usam somente uma vez— e mesadas altas. Eu dei apenas um valor simplório para incentivar a leitura.Virgínia Madureira Abreu
Com a filha mais nova, Isabela, 7, a leitura é feita à noite. “Se não leio, ela não consegue dormir. Às vezes peço para ela ler, e ela gosta bastante.”
Cuidado com a mensagem
Especialistas explicam que a estratégia exige cuidado. A ideia precisa ficar muito clara para a criança ou adolescente, afirma Danielle Admoni, psiquiatra especializada em infância e adolescência e supervisora de residência da Unifesp.
Se é explicado para a criança que ela está recebendo dinheiro porque ler é uma coisa muito importante, que será gratificante e que, mais para frente, ela deve ler sem receber dinheiro, maravilha.Danielle Admoni, psiquiatra
O problema é a criança associar a leitura apenas a uma recompensa. “Aí perde um pouco a função do prazer do livro, de todos os ganhos da leitura.”Continua após a publicidade
É uma coisa meio dual. Tem de tomar cuidado para não acabar arrumando outro problema. Danielle Admoni, psiquiatra
“Qual mensagem que você quer transmitir a seu filho?”. A psicóloga Ana Flavia Pereira, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, faz o questionamento. A estratégia deve ser muito bem explicada.
A estratégia não se sustenta por muito tempo porque a leitura passa pelo prazer, emoções e criatividade. Dando dinheiro, talvez ela entenda como algo que deve ser feito de forma rápida e superficial. Ela pode ter pouca iniciativa espontânea, o que não é legal.Ana Flavia Pereira, psicóloga
Como incentivar a leitura
Especialistas dão dicas para incentivar o hábito de leitura das crianças e adolescentes —o que pode ajudar a reduzir o tempo de tela.Continua após a publicidade
O primeiro ponto é ser exemplo. Se os pais ficam o tempo todo usando telas, a situação se torna realmente mais difícil.
Não adianta falar para a criança: ‘Sai do celular e vai jogar bola’. É muito importante pensar no exemplo que passamos. Não é só o que a gente pede, mas, principalmente, o que a gente faz.Danielle Admoni, psiquiatra
A psiquiatra reforça a importância de não apresentar os celulares ou a TV tão cedo. “Essa criança não comprou o celular sozinha. Em uma situação em que tudo foi permitido, fica mais difícil voltar atrás. Não deixe chegar nisso.”
É fundamental incluir outras atividades no dia a dia, principalmente em contato com a natureza. Além disso, os pais devem participar das atividades ao lado dos filhos.
Existe um trabalho dos pais para que isso aconteça: eles precisam estar envolvidos e ajudar a criar pequenos hábitos. É deixar de ver um filme para inventar uma brincadeira, um jogo, algo feito em conjunto. É um incentivo diário, e é preciso persistência até se adaptar –assim como acontece com atividade física.Ana Flavia Pereira, psicóloga
Para a leitura, há diversas dicas:
Deixe os livros em casa, com fácil acesso (prateleiras em altura ao alcance das crianças);
Explique a importância da leitura e como ela pode o ajudar na escola;
Crie um ambiente de leitura que seja agradável (luz baixa, sem telas acesas);
Faça leitura coletiva com a família, envolvendo todos os moradores da casa;
Converse sobre livro na frente das crianças;Continua após a publicidade
Deixei a criança escolher o livro;
Introduza os livros ainda na fase de bebê (há diversos tipos que podem ser colocado na água, inclusive);
Visite espaços culturais, como bibliotecas públicas e museus. Deixe a criança explorar;
Faça leitura antes de dormir;
Deixe a criança participar ativamente das histórias;
Leia de forma atraente, mudando a entonação da voz, por exemplo.Continua após a publicidade
A leitura tem muitos benefícios: ajuda na criatividade, inteligência, autonomia, emoção e confiança. A leitura proporciona a entrada em um mundo imaginário que ajuda a criança se desenvolver melhor, incluindo construir relações mais saudáveis, de afeto e respeito.Ana Flavia Pereira, psicóloga