Diversos estudos já mostraram que o consumo de dieta rica em gordura induz uma resposta inflamatória no hipotálamo, umas das regiões do cérebro. A inflamação ocorre poucos dias após a ingestão excessiva de lipídeos e está associada ao desenvolvimento de doenças metabólicas, como a obesidade. É então que um tipo de célula imune residente no cérebro, chamada micróglia, desempenha um papel importante na resposta inflamatória.
A investigação ocorreu no âmbito do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP. Também contou com apoio da Fundação por meio de outros dois projetos (17/22511-8 e 21/00443-6).
“Neste trabalho, estudamos como o cérebro responde a uma alimentação rica em gorduras, típica das dietas modernas ocidentais, nas quais o consumo de fast-foods e ultraprocessados é bastante frequente”, diz Natália Ferreira Mendes, pesquisadora do Departamento de Medicina Translacional da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp.
No estudo, o grupo descobriu que as micróglias não são as únicas células de defesa envolvidas no processo: outras células imunes, que vêm de fora do cérebro e expressam um receptor chamado CXCR3, também são recrutadas para o cérebro quando consumida uma dieta rica em gorduras. O “reforço” parece ter um papel benéfico, ajudando as micróglias a atenuar o processo inflamatório e prevenindo o desenvolvimento da obesidade.
“Descobrimos esse potencial papel anti-inflamatório dessas células por meio de um experimento em que bloqueamos o recrutamento”, explica Mendes. “As células imunes são atraídas por substâncias secretadas em locais distantes do corpo, onde ocorre a inflamação, e se dirigem rapidamente para lá. Em termos simples, é como se alguém acionasse um spray de perfume em um cômodo distante da sua casa e você fosse direcionado para lá pelo cheiro. O que fizemos foi impedir que esse ‘cheiro’ fosse percebido e, com isso, muitas células não conseguiram chegar ao local inflamado.”
Verificou-se então que os animais em que as células de defesa não conseguiram chegar ao hipotálamo ganharam mais peso, acumularam mais gordura e apresentaram piora de vários marcadores metabólicos e bioquímicos. O grupo também conseguiu identificar que as células imunes recrutadas são muito diferentes quando comparados machos e fêmeas, o que pode influenciar como indivíduos de sexos distintos reagem à qualidade da dieta e como o sistema imunológico contribui para o ganho de peso e o desenvolvimento de doenças relacionadas.
O estudo, assim, ajudou a compreender melhor o papel das células de defesa, a importância do receptor CXCR3 como um sinalizador para que possam chegar até o hipotálamo durante a inflamação e como podem impactar o metabolismo em um contexto de inflamação induzida por dieta.
A dieta utilizada no estudo é rica em gordura, principalmente a saturada, encontrada em alimentos de origem animal, como carnes vermelhas e laticínios, e em alguns alimentos de origem vegetal, como o óleo de coco. Ela tem consistência sólida ou pastosa em temperatura ambiente, o que a torna uma escolha atrativa para a indústria alimentícia, que a utiliza para melhorar a textura, a consistência e a palatabilidade dos produtos.
“O consumo dessa dieta aumenta a concentração de ácidos graxos livres no sangue, uma das formas pelas quais a gordura é transportada pelo corpo. Esses ácidos graxos chegam ao hipotálamo, uma área do cérebro que é particularmente vulnerável”, detalha Mendes.
Diferentemente de outras regiões cerebrais, o hipotálamo faz contato com uma área chamada eminência mediana, que não apresenta barreira hematoencefálica. Tal barreira age como uma “muralha”, protegendo o cérebro de substâncias nocivas presentes no sangue. Na eminência mediana, os vasos sanguíneos possuem “fenestras” – grandes poros ou buracos na estrutura dessa muralha – que permitem a entrada de várias moléculas, como os ácidos graxos livres, que rapidamente alcançam o hipotálamo. Além disso, o hipotálamo está localizado ao redor do terceiro ventrículo, uma área por onde circula o líquido cefalorraquidiano. Isso o torna ainda mais vulnerável a oscilações nas concentrações de substâncias desse líquido. Por isso, a ingestão excessiva de gordura é rapidamente detectada pelo hipotálamo e resulta na ativação das micróglias para tentar controlar os danos causados pelos ácidos graxos.
Quando a ingestão elevada de gordura é mantida ao longo do tempo, porém, as micróglias não conseguem manter o controle da situação sozinhas. É aí que entram as células imunes convocadas de outras partes do corpo.
A partir dos resultados obtidos, várias questões surgem para futuras investigações. Uma das abordagens do estudo foi um mapeamento abrangente do material genético tanto das micróglias quanto das células recrutadas para o cérebro. “Esse tipo de análise gera um banco de dados valioso, que pode ser acessado por pesquisadores de todo o mundo para investigar genes-alvo envolvidos em diferentes condições fisiológicas e patológicas”, afirma a pesquisadora.
“Com isso, fornecemos a base para que muitos projetos de pesquisa possam ser desenvolvidos, não apenas para entender melhor o papel das micróglias e demais células imunes recrutadas no contexto da obesidade e da inflamação no hipotálamo, mas também para explorar as diferenças observadas entre fêmeas e machos. Estudar a origem dessas diferenças no material genético – considerando aspectos como programação metabólica, alterações hormonais, efeito dos nutrientes da dieta, entre outros – é um campo que ainda precisa ser explorado em mais detalhes.”
Mendes ressalva que, embora os achados do grupo sejam pioneiros ao mostrar como as células imunes periféricas que expressam o receptor CXCR3 são atraídas para o cérebro no contexto da inflamação induzida por dieta rica em gordura, ainda existem muitas questões em aberto. “Por exemplo: como essas células recrutadas se comunicam com as células residentes, como micróglias e neurônios, entre outras? Quais são os efeitos de longo prazo do recrutamento dessas células no cérebro? Qual o destino dessas células após atenuar o processo inflamatório? Existem estímulos hormonais/neurais periféricos que ajudam a direcioná-las para o cérebro? Essas questões precisam ser exploradas para que possamos entender completamente os mecanismos envolvidos e desenvolver abordagens terapêuticas mais eficazes”, avalia.
De todo modo, a descoberta de uma via específica de recrutamento dessas células para o cérebro abre uma nova possibilidade terapêutica, com o potencial de desenvolver fármacos para tratar a obesidade e comorbidades associadas, como diabetes tipo 2.
Além de Mendes, assinam o paper Licio Augusto Velloso e Eliana Pereira de Araújo, do Laboratório de Sinalização Celular (LabSinCel) do OCRC e supervisores do estudo; Ariane Zanesco, Dayana C. da Silva e Jonathan F. Campos (LabSinCel); Cristhiane Aguiar e Pedro de Moraes-Vieira (Laboratório de Imunometabolismo do Instituto de Biologia da Unicamp); Gabriela Rodrigues-Luiz (Universidade Federal de Santa Catarina); e Niels Olsen Saraiva Câmara (Universidade de São Paulo).