O uso indevido de implantes hormonais manipulados e esteroides pode estar relacionado a 257 casos de complicações de saúde e duas mortes no Brasil. É o que revela o levantamento realizado por sociedades médicas. Intitulado “Vigicom Hormônios: Observatório do Mau Uso de Hormônios“, os dados demonstram um cenário alarmante sobre os riscos associados ao uso inadequado de hormônios, principalmente para fins estéticos.
O Vigicom Hormônios é uma plataforma que busca quantificar os efeitos adversos do mau uso de hormônios, desenvolvida pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (ABESO) e o Programa “Bomba Tô Fora”, em parceria com a Associação Médica Brasileira (AMB).
Através da ferramenta, médicos podem relatar o mau uso de hormônios, como para fins estéticos e sem indicação ética e comprovação científica.
De acordo com o levantamento, do total de casos reportados, 45,9% são de pacientes usando implantes hormonais manipulados, sendo a maioria mulheres (63), com uma média de 42,9 anos. Outros 34% estavam relacionados a hormônios de uso intramuscular.
Um dos tipos de implantes hormonais manipulados mais comuns para esse fim é o “chip da beleza“, prescrito como estratégia para emagrecimento, tratamento da menopausa, antienvelhecimento, redução da gordura corporal, aumento da libido e da massa muscular.
Esses implantes podem conter inúmeras substâncias, embora normalmente sejam compostos por testosterona ou por gestrinona, um progestágeno com efeito androgênico. Combinações contendo estradiol, oxandrolona, metformina, ocitocina, outros hormônios e NADH também são produzidas.
Os implantes hormonais não são aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para uso comercial e produção industrial. Além disso, não possuem bula ou informações adequadas de farmacocinética, eficácia ou segurança.
“Pela legislação, o médico pode prescrever uma dose diferente de um fármaco aprovado pela Anvisa [para casos com indicação médica]. É aí que entra a farmácia de manipulação. Isso é legalizado”, explica Clayton Macedo, presidente do Departamento de Endocrinologia do Exercício e do Esporte da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), à CNN.
No entanto, o especialista afirma que existem brechas na legislação que podem permitir a prescrição de hormônios manipulados em doses e com outros componentes mascuja eficácia e segurança ainda não são comprovadas cientificamente.
Vale lembrar que existe um único tipo de implante hormonal aprovado pela Anvisa, o Implanon, composto por etonogestrel e que atua como método anticoncepcional.
Estética é a principal motivação para o uso inadequado de hormônios
O levantamento mostra que a estética é a principal motivação para o uso inadequado de hormônios e implantes hormonais manipulados. Do total de casos analisados, 45,9% relataram o uso para fins estéticos, como emagrecimento ou ganho de massa muscular, sendo seguidos por 37% que usavam para combater o cansaço, e 29,2% para tratar sintomas de menopausa ou “andropausa”.
“A gestrinona, que é bem frequente nos implantes hormonais manipulados, costuma ser vendida com a promessa de aumentar o ganho de massa muscular, secar barriga e definir músculos”, explica Macedo. “Também é comum ter no implante o oxandrolona [esteroide hormonal, derivado da testosterona] ou, até mesmo, a própria testosterona. Em alguns casos há, até, a colocação de sildenafila nesses implantes, que é um remédio para impotência sexual”, elenca.
“Algumas prescrições podem indicar doses e combinar substâncias das quais não sabemos os efeitos, porque não existem estudos de segurança, nem sobre essas doses, nem sobre essas combinações”, explica Macedo. “Então, nós queremos que tudo isso seja regulamentado. Ninguém é contra a prescrição de hormônios pelo médico. Mas faremos a indicação quando houver estudos que comprovem a eficácia e a segurança dessas substâncias”, reitera.
Hipertensão, infarto e AVC estão entre as complicações graves
De acordo com o estudo, entre os pacientes que utilizaram implantes hormonais manipulados, 20,3% necessitaram de internação hospitalar e 5,1% precisaram de cuidados intensivos em UTI (unidade de terapia intensiva).
Entre os compostos utilizados relacionados às complicações de saúde, a gestrinona foi a mais comum (49,2%), seguida pelos derivados de testosterona (53,4%). As motivações para o uso de hormônios por essas pessoas que tiveram efeitos adversos seguiu sendo a estética (52%) e o combate ao cansaço (46,6%), principalmente.
Os dois óbitos relatados ocorreram devido a infarto agudo do miocárdio, após o uso de testosterona intramuscular, e por taquiarritmia e tromboembolismo pulmonar.
“Esses dados mostram que o uso inadequado de hormônios pode ter consequências extremamente graves, indo muito além dos resultados estéticos desejados”, afirma comunicado oficial da SBEM, enviado à CNN.
Sociedades cobram Anvisa para corrigir “brechas” na legislação
O relatório do Vigicom Hormônios visa reforçar a regulamentação sobre a prescrição e comercialização de implantes hormonais manipulados. Segundo comunicado, os dados do estudo “serão usados para pedir mais rapidez da Anvisa para corrigir brechas da legislação que permitem produção em escala industrial de implantes hormonais manipulados, proibindo que produtos sem aprovação e sem dados de farmacocinética, eficácia e segurança sejam comercializados”.
“Nós não somos contra o uso de hormônios por pacientes que realmente precisam. Mas é proibido pelo CRM [Conselho Regional de Medicina] o uso de hormônios para fins estéticos e de performance, e a maioria está sendo usada para isso”, reitera Macedo.
O especialista acredita que, para corrigir as “brechas” na legislação, a Anvisa deve suspender temporariamente a produção e comercialização de implantes hormonais que não estão aprovados e cuja eficácia e segurança ainda não são comprovadas por estudos científicos.
Em agosto de 2024, 32 sociedades de especialidades médicas protocolaram na Anvisa uma proposta de regulamentação. Procurada pela CNN, a agência não se posicionou sobre o assunto até o momento da publicação desta reportagem.