Uma propriedade rural em São Borja, no extremo oeste do Rio Grande do Sul, na fronteira com a Argentina, abriga uma das maiores e mais importantes criações de cavalos de raça do Brasil. A área, com 15.362 hectares (o que corresponde a 5% do território do município), reúne em torno de 1.000 animais. Referência internacional em genética equina, o local abriga também outras atividades agropecuárias e serve como uma reserva ambiental do bioma Pampa, preservando campos nativos gaúchos.
Outro elemento dá relevância histórica e patrimonial ainda maior para a fazenda: ela pertence ao Exército Brasileiro. Estamos falando da Coudelaria e Campo de Instrução de Rincão, a última fazenda de cavalos das Forças Armadas ainda em atividade no Brasil. É nesse local que nascem e são criados todos os equinos que o Exército utiliza.
“Somos um verdadeiro arsenal de guerra de cavalos militares, uma fábrica de equinos”, resume o diretor da Coudelaria de Rincão, o tenente- coronel Leandro Sicorra Wilemberg.
A comparação com um planejamento fabril é adequada ao trabalho desenvolvido no local. Com a meta de entregar ao Exército, a cada ano, cerca de 150 cavalos prontos para uso, a fazenda começa a preparação para cumprir esse objetivo cinco anos antes. No primeiro ano, é feito o planejamento financeiro para custeio da criação. O emprenhamento das éguas ocorre no segundo ano. Os potros nascem 11 meses depois da inseminação. Após três anos de criação, os cavalos militares estão domados e treinados.
Os animais passam por avaliação de linhagem e performance, e, por fim, definem-se os locais de envio para distribuição. Em 2024, a Coudelaria de Rincão entregou 170 cavalos, o que equivalente a um animal domado e pronto para uso a cada dois dias.
No Brasil, o cavalo militar tem vários usos. O primeiro é cerimonial, nos três regimentos de guarda do Exército em Brasília (os Dragões da Independência), no Rio de Janeiro e em Porto Alegre. Parte dos animais segue para tarefas de patrulhamento de campos de instrução e de outras áreas militares. Além disso, os cavalos de Rincão atendem às necessidades da Escola de Equitação do Exército, local que, além de especializar oficiais na arte equestre, é um dos principais centros fomentadores do hipismo brasileiro.
Qualidade genética
“É um desafio produzir cavalos aqui. Eles têm que ter aptidão desportiva, militar, para patrulhamento ostensivo. Os animais precisam atender a todos esses requisitos”, afirma Wilemberg. Entre outras características desejáveis a um bom cavalo militar estão pelagem uniforme, dorso forte e de bom tamanho, pescoço alongado, membros fortes e bem aprumados e boa capacidade cardiorrespiratória.
Cavalos da Coudelaria de Rincão
E não é apenas o Exército Brasileiro que se beneficia dos cavalos que saem de Rincão. A Força Aérea também emprega animais da coudelaria para patrulhamento, e as polícias militares de vários Estados fazem pedidos de equinos para uso em policiamento ostensivo e para forças de choque. Além disso, há intercâmbios com as Forças Armadas de diversos países latino-americanos, com a troca de animais e material genético.
Entre as principais raças criadas em Rincão estão o brasileiro de hipismo (BH), o puro-sangue inglês (PSI), o bretão, o cavalo crioulo e o polo argentino. Cada uma delas reúne características próprias para uso militar. O BH, por exemplo, é um cavalo típico de equitação, e o crioulo é muito requisitado por polícias militares para patrulhamento ostensivo.
Já o bretão, além de ser usado para cerimonial militar, tem uma função importante na reprodução dos animais na coudelaria. As éguas bretãs são muito utilizadas como receptoras de embriões de outras raças, uma técnica em que Rincão foi um dos criatórios pioneiros no Brasil e segue como referência na América Latina.
“A égua bretã produz mais leite e tem um colostro mais forte para a primeira mamada do potro, além de uma habilidade materna incrível. Nossos melhores e mais raros potros são gestados por éguas bretãs”, conta o major Diego Castilhos de Almeida, subdiretor da coudelaria.
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Destaque no hipismo
É no cavalo BH que está o principal destaque de Rincão – a propriedade militar é o maior criatório da raça no país, com mais de 800 exemplares, e tem alguns dos mais premiados. Todos os anos, a coudelaria participa do Festival do Cavalo Brasileiro de Hipismo, que acontece no estado de São Paulo.
Embora não seja um criatório comercial, a coudelaria participa do evento para balizar sua produção em relação aos demais haras da raça no Brasil. A avaliação dos animais, que fica a cargo de juízes nacionais e internacionais, norteia a renovação do plantel de matrizes, com base na qualidade genética dos equinos.
“Participamos do festival do BH para nos medirmos, para vermos se estamos nas mesmas condições dos grandes criatórios privados e para mostrar o resultado do investimento”, destaca o major Castilhos. “Entregamos em patrimônio de equinos muito mais do que se investe. Temos cavalos BH que, se fôssemos vender no mercado, custariam milhões de reais”, complementa o tenente-coronel Wilemberg.
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Bem-estar animal
Se todos os cavalos do Exército nascem em Rincão, quando possível, também terminam sua vida ali. A coudelaria conta com um projeto geriátrico, que dá uma destinação ambientalmente correta aos equinos com idade avançada ou que sofreram algum problema físico que os impede de seguir prestando serviços militares.
Esses cavalos idosos ficam abrigados em uma área de campo nativo de 160 hectares, recebendo medidas profiláticas e exames sanitários. O cuidado em fim de vida reflete a preocupação veterinária ao longo da criação, explica o 1º tenente Lucas Melantonio, chefe da seção técnica da coudelaria.
“Aqui temos uma responsabilidade muito grande em fazer um serviço muito bem feito no bem-estar animal, cuidando que eles sejam bem tratados, bem alimentados, que problemas veterinários sejam resolvidos e que o manejo seja bem humanizado”, afirma.
O que é uma coudelaria?
A palavra “coudelaria” parece estranha para os ouvidos modernos, mais acostumados com o termo “haras” para designar locais de criação de cavalos. No entanto, seu uso é antigo, e, como no caso de Rincão, ligado à atividade militar.
Coudelaria é originária da palavra coudel, que em Portugal designava o “capitão de cavalaria”. Até hoje, o termo é mais comum justamente quando se fala de criações de equinos militares ou de propriedade estatal.
Já haras é uma palavra de origem francesa, que também significa lugar de criação de cavalos, mas é mais usual em locais de propriedade privada.
Outras atividades
Além da criação de cavalos, outras atividades rurais também são realizadas na Coudelaria de Rincão. Algumas são para suporte dos equinos, como o plantio de pastagens, aveia e alfafa.
Dentro da pecuária, a coudelaria também desenvolve a criação de bovinos, contando hoje com um rebanho de 1500 cabeças de gado, quase todos braford. A escolha da raça se deve a um projeto de padronização dos animais e de melhoria dos índices zootécnicos.
Esses bovinos servem como reserva técnica de fornecimento de proteína animal aos militares. Quando há excedentes, os animais são leiloados, e sua venda é uma fonte de recursos para o Exército.
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Algumas áreas da coudelaria também são arrendadas para produtores rurais da região, que plantam soja, trigo e fazem criação de gado, renda que também entra para os cofres da União.
Os soldados que servem em Rincão recebem diversos cursos, muitos em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), para poderem atuar com a equinocultura e outras atividades rurais. Entre eles, estão cursos de doma racional, manejo de equinos, casqueamento e ferrageamento, manejo sanitário de bovinos de corte, inseminação artificial de bovinos, operação e manutenção de tratores e implementos agrícolas, aplicação de defensivos agrícolas, entre outros. Dessa forma, a coudelaria contribui para a formação de mão de obra especializada em serviços rurais.
No entanto, a outra importante função que Rincão tem para o Exército está na segunda parte de seu nome: Campo de Instrução. Pelo menos um quarto da área é destinado para exercícios de treinamento militar, sendo o segundo maior campo de instrução do Comando Militar do Sul.
A Coudelaria de Rincão também é reconhecida pela sua importância ambiental. O espaço é uma das últimas grandes reservas do bioma Pampa, com a maior parte de seus 15 mil hectares ocupados por campos nativos. Diversos animais silvestres vivem na área, como o veado-campeiro, gaviões, tatus, tucanos, capivaras, emas, entre outros.
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Histórico
Durante muito tempo, os cavalos formaram a força de tração para peças de artilharia, transporte de carga e pessoal e, principalmente, como força de combate. A velocidade, a mobilidade e o valor do impacto psicológico de um choque de cavalaria eram elementos que sempre foram valorizados em guerras desde as civilizações mais antigas. Os primeiros indícios de uso de equinos em conflitos humanos remontam a cerca de 4.000 anos atrás, na Ásia Central.
No Brasil, a criação de cavalos para uso militar começou ainda na época colonial, no século XVII, em Pernambuco, a partir da organização do Regimento de Dragões Auxiliares, após as guerras contra os holandeses nas capitanias nordestinas.
No Rio Grande do Sul, a primeira fazenda de cavalos militares foi a Estância Real de Bojuru, criada em 1737 em territórios que hoje pertencem aos municípios de São José do Norte, Tavares e Mostardas. No local, eram criados equinos e bovinos para as tropas portuguesas estabelecidas no extremo sul do Brasil.
Ainda no século XVIII, a área da Coudelaria de Rincão integrava a Estância de São Gabriel, que pertencia à Companhia de Jesus. Em 1843, as terras foram incorporadas aos bens do Estado e arrendadas a fazendeiros, mas retornaram à jurisdição do Ministério da Guerra em 1891. Finalmente, em 1922, o chamado Rincão de São Gabriel foi transformado na Coudelaria de Rincão.
Ao longo de sua história, o Exército Brasileiro possuiu diversas propriedades para a criação de cavalos militares. Em 1950, eram nove as coudelarias: Rincão (RS), Saycan (RS), Avelar (RJ), Campos (RJ), Pouso Alegre (MG), Monte Belo (MG), Tindiquera (PR), Campo Grande (MS) e Campinas (SP).
A mecanização das Forças Armadas durante o século XX reduziu a necessidade de cavalos militares. Em 1939/1940, no início da Segunda Guerra Mundial, o Exército tinha um efetivo de 22.810 equinos, hoje conta com apenas 2.181. Em 1975, as coudelarias – incluindo Rincão – ainda em atividade foram extintas, com exceção de Campinas (SP), que recebeu os plantéis de animais.
No entanto, em 1987, o Ministério do Exército decide extinguir a coudelaria de Campinas e recriar a de Rincão. “A principal razão para a mudança na época é porque aqui a área tinha dimensões adequadas para criatório, enquanto em Campinas começou a sofrer a pressão da expansão urbana”, destaca o tenente-coronel Wilemberg. Com isso, a partir de janeiro de 1988, Rincão se torna a única coudelaria do Exército Brasileiro.
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Uso do cavalo em combates
Falar em necessidade de cavalos para as Forças Armadas nos tempos atuais, em que conflitos armados estão cada vez mais tecnológicos, com o uso de inteligência artificial, realidade virtual, drones, mísseis hipersônicos, pode parecer até um anacronismo. No entanto, a antiga relação militar com os equinos, que remonta aos primórdios da domesticação do cavalo, ainda está longe de acabar.
“O cavalo não deixou de ser um meio de combate. A Argentina e o Chile, por exemplo, nas suas áreas de montanha, usam cavalos e muares em locais com dificuldade para circulação de veículos, no transporte de pessoas e cargas”, explica Wilemberg.
O diretor de coudelaria lembra que as guerras modernas ainda usam cavalos. “Eles foram muito usados no Afeganistão, pelas condições do terreno, e mesmo na Ucrânia ainda estão sendo usados em algumas missões, principalmente na época do degelo do solo. Então o cavalo ainda é uma engrenagem importante para os exércitos”, destaca.