Os 3,1 milhões de estudantes que fizeram o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) neste domingo (3) resolveram 90 questões de linguagens e ciências humanas, além da redação, cujo tema foi “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”.
Professores ouvidos pela CNN elogiaram a temática da redação por ser acessível, de fácil compreensão e necessário. Os candidatos ouvidos pelo MEC (Ministério da Educação) também aprovaram o tema, mas alguns tiveram dificuldades de pensar em repertório para citar no texto.
Veja exemplos de redações escritas por professores de língua portuguesa e redação:
Lucas Góes, do Elite Rede de Ensino, do Grupo Salta.
A música “Identidade”, do cantor e compositor Jorge Aragão, retrata o processo de reconhecimento de um eu-lírico negro diante de suas raízes culturais ao afirmar que “somos a cor da noite, filhos de todo açoite, fato real de nossa história”. Na contramão da canção, esse processo de identificação com a herança africana não é realidade em um país como o Brasil, que se intitula miscigenado mas renega em muitos aspectos suas origens, construindo desafios que vão além dos versos de samba. Isso ocorre sobretudo devido à ignorância social em desconhecer a relevância dessa multiculturalidade e à falta de acesso a referências afrobrasileiras na educação básica.Play Video
De início, é inadmissível que ainda persista o discurso de desconhecimento acerca do valor da cultura africana na formação da identidade brasileira. Na verdade, o que ocorre é uma tentativa de apagamento dessa matriz por meio de discursos universalistas e eufêmicos, colocando sempre em segundo plano a luta, a resistência e a servidão de milhares de negros em um dos regimes escravistas mais longos do mundo, como foi o caso do Brasil. Esse cenário se acentua, ainda, com a desigualdade social, já que muitos deles são marginalizados pela sociedade e segregados em regiões periféricas de modo a diminuir e a apagar o seu valor. Em “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, a escritora Carolina Maria de Jesus retrata essa tentativa de segregação ao narrar sua realidade ao chegar, como mãe negra, ao complexo do Canindé em São Paulo. Valorizar a literatura de Carolina é, de certa forma, valorizar a potência de suas raízes e reconhecer que “somos herança da memória”, como cantam os versos de Aragão.
Além disso, a ausência de material e de abordagem pedagógica que dialogue com nossas raízes africanas é uma falha do sistema educacional do país. Apesar da existência da lei de n°. 10.639, de 2003 — que inclui a obrigatoriedade dessa temática no currículo oficial das escolas —, o que se verifica, em geral, é uma apresentação superficial da composição étnica e social do Brasil, com debates e discussões pouco efetivos sobre os conceitos de raça, cultura, igualdade e cidadania. Dessa forma, predomina na educação uma visão conservadora que enxerga a valorização da herança africana dentro das Artes, da História e da Literatura como um exagero, uma pauta problematizadora, o que afasta os alunos do conhecimento sobre a constituição da própria origem e aumenta os desafios relacionados ao seu enaltecimento.
Portanto, muitos dos obstáculos enfrentados na tentativa de valorizar a herança africana passam pela visão construída pela própria sociedade e pelo papel que a educação desempenha nesse cenário. Por isso, é dever das escolas — instituições comprometidas com a formação intelectual de crianças e jovens — reformular seus projetos político-pedagógicos com o objetivo de ratificar a importância do contexto africano para o desenvolvimento da cultura nacional. Isso deve ocorrer por meio de programas de formação continuada oferecidos aos professores e aos gestores, de maneira a garantir na prática a execução da lei 10.639/2003. Assim, será possível reverter a condição de simplicidade com que a questão das raízes africanas é tratada, mostrando ao eu-lírico dos versos de Jorge Aragão que é possível, ainda que com certo custo, resgatar e engrandecer sua própria identidade.
Meire Anne Bochnia Zanoni, especialista em Redação do Colégio Positivo.
O romance “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, retrata a vida da personagem africana Kehinde, que, ainda criança, chegou ao Brasil do século XIX. Em sua luta pela sobrevivência, a menina precisou adotar outra identificação: Luísa Gama. Desse modo, assim como expresso pela literatura, a imposição de “nomes de brancos” foi uma dentre as diversas violações cometidas para com os negros durante o período colonial. Dito isso, decorridos mais de cinco séculos da dominação europeia, a falta de conhecimento acerca da cultura negra e a escassez de sua representatividade são os maiores desafios para valorização da herança africana no país.
De início, cabe destacar a fragilidade que ainda permeia o sistema educacional brasileiro, no que se refere à legitimação de conteúdos de matrizes africanas. Sobre isso, Gabriel Nascimento, professor e ativista do “Movimento Negro”, explicita que há no país uma branquitude que tenta apagar as raízes africanas do conjunto de conhecimentos importantes para a formação histórico-cultural brasileira, a fim de manter o sistema de opressão a que os negros e afrodescendentes foram submetidos. Assim, a propagação do arcabouço teórico trazido da África é ponto fulcral para a valorização dessa cultura; fato que tem sido desafiador na contemporaneidade.
Ademais, a pouca representatividade dada aos negros – e sua cultura – na sociedade é outro grande obstáculo para o enaltecimento da herança africana no Brasil. Diante disso, torna-se pertinente citar a obra “Cumbe”, do premiado quadrinista Marcelo D’Salete, na qual os personagens – protagonistas negros – amam, sonham e lutam. Nesse viés, obras literárias capazes de ilustrar negros e negras, para além da condição de escravizados, conferem prestígio ao legado africano esboçado na história.
Portanto, o reconhecimento do valor social da herança africana no Brasil é imprescindível para a emancipação histórico-cultural dos brasileiros. Tendo isso em vista, cabe ao Governo Federal – responsável pela gestão do país -, em parceria com o Ministério da Educação, estabelecer políticas públicas que tornem o acesso a obras literárias exaltantes da cultura africana mais democrático, por meio da distribuição gratuita desses livros. Com isso, os estudantes brasileiros poderão conhecer e valorizar suas raízes africanas.
João Filipe Magnani, professor de Língua Portuguesa e Redação do Curso Positivo e do curso Redação de Campeão
Após a morte do apresentador Sílvio Santos, circularam pelas redes sociais trechos marcantes de seus programas. Em um deles, ao ouvir de uma criança negra que ela desejava ser atriz, o dono do SBT questiona: “mas com esse cabelo?”. Tal passagem evidencia como os traços característicos de afro-brasileiros são desvalorizados, o que se estende, infelizmente, também para a história e cultura desse grupo. Nesse contexto, é imperativo debater como uma visão eurocêntrica da história e como a falta de letramento racial são obstáculos para a valorização do legado africano no Brasil.
Nessa perspectiva, vale ressaltar a contribuição do eurocentrismo para o problema. Sob esse viés, o linguista Caetano Galindo, em seu livro “Latim em Pó”, destaca a importância dos escravizados africanos na formação do português brasileiro e defende, ainda, que a língua falada por aqui está mais para “Flor de Loanda” do que para “Flor do Lácio”. A despeito dessa colaboração para o idioma, a ideia que perpassa na sociedade brasileira é de superioridade do português europeu e que somente em Portugal se fala corretamente.
De maneira análoga, essa desvalorização ocorre com outros aspectos da herança africana. Além disso, a ausência de conhecimento sobre a cultura afro-brasileira se mostra um obstáculo para sua valorização. Nesse cenário, o jornalista Miguel dos Anjos, em artigo para o Correio Braziliense, sustenta que muitos influenciadores digitais fazem um importante trabalho de letramento racial ao produzir vídeos com temas relacionados a essa cultura. Entretanto, o alcance desses produtores de conteúdo é muito pequeno quando comparado ao da mídia hegemônica, na qual há pouco espaço para esses temas, o que impede que o grande público os conheça.
Portanto, fica evidente que é preciso mudar a visão da sociedade em relação à herança africana. Para isso, cabe ao Ministério da Educação – órgão responsável pelas políticas educacionais – promover a valorização desse legado. Isso deve ser feito por meio de alteração no currículo escolar para que todas as disciplinas trabalhem conteúdos relacionados ao assunto, como já ocorre na disciplina de história, a fim de que os alunos percebam a importância dessa cultura no Brasil. Em adição, os meios de comunicação tradicionais devem dar espaço para esses temas em seus programas de maior audiência. Somente assim, crianças negras não precisarão ouvir questionamentos como os de Sílvio Santos.
Como foi o primeiro dia de Enem
No último domingo (3), o tema da redação tratou da herança africana no Brasil, o que, logo após a divulgação, repercutiu nas redes sociais e foi apontado por professores ouvidos pela CNN como acessível e necessário.
As provas de linguagens e ciências humanas foram marcadas por longos textos e questões raciais e identitárias. Outros destaques presentes nas avaliações foram menção a Rita Lee, esportes, fake news e memes, além da COP e os desafios climáticos que o Brasil enfrenta.
CNN divulga gabaritos extraoficiais
Apesar dos gabaritos oficiais só terem previsão de divulgação para o dia 20 de novembro, a CNN já divulgou gabaritos extraoficiais das prova realizadas no dia 3 de novembro, a partir da correção de uma equipe de professores do SAS Educação. Além disso, é possível conferir um dos cadernos de provas na íntegra.
Os gabaritos extraoficiais das provas de ciências da natureza e matemática, que ocorrem no dia 10 de novembro, também estarão disponíveis no site da CNN após o fim da aplicação do Enem.
Calendário do Enem 2024:
- Segundo dia de prova: 10 de novembro de 2024;
- Divulgação dos gabaritos: 20 de novembro de 2024;
- Resultado do Enem: 13 de janeiro de 2025.