O belga Michel Arrion, diretor-executivo da Organização Internacional do Cacau (ICCO, na sigla em inglês), partiu de Abidjã, na Costa do Marfim, para participar da Partnership Meeting 2025, evento que ocorreu em São Paulo em março e reuniu mais de 500 pessoas, de 26 países, para debates sobre o futuro da cultura.
Não é à toa que o executivo vive na cidade africana, que é o centro econômico da Costa do Marfim. O país é o maior produtor de cacau do mundo: os marfinenses dominam cerca de 40% do mercado, uma fatia equivalente a 2 milhões de toneladas por safra.
Atualmente, o Brasil ocupa a sexta colocação na produção da amêndoa, mas diversos integrantes da cadeia consideram o país uma “joia a ser relapidada”, com alto potencial de voltar a ser referência na produção global. A participação brasileira no segmento pouco movimenta o mercado externo. “O Brasil consome o que produz. É pouca importação e quase nenhuma exportação”, observa Arrion.
Mas isso tende a mudar, acredita ele. O Plano Inova Cacau, que o Ministério da Agricultura lançou em novembro de 2023, pretende elevar a produção nacional para 400.00 toneladas anuais até 2030 e tornar o país autossuficiente. “Não deve haver dificuldade alguma para isso. O país tem condições climáticas favoráveis, terra, água e agricultores qualificados. É uma questão de tempo”, afirma o executivo.
Globo Rural: Qual é, hoje, o peso do Brasil no mercado global de cacau?
Michel Arrion: O Brasil é um gigante econômico e uma potência agrícola, mas é discreto no setor do cacau. Como se diz no boxe, o país está “lutando abaixo do peso”. O Brasil consome o que produz, e produz basicamente na faixa do seu consumo. Por isso, não está tão ativo no comércio global. É pouca importação e quase nenhuma exportação. Para o Brasil, o mercado interno é o mais importante, mas o potencial é gigantesco. Fiquei muito feliz de ouvir o secretário de Agricultura da Bahia (Wallison Tum) falar sobre o Plano Inova Cacau 2030, que tem como objetivo dobrar a produção brasileira em cinco anos.
GR: Essa meta é plausível?
Arrion: O Brasil não deve ter dificuldade alguma para dobrar a produção em cinco anos, e por várias razões. O país tem condições climáticas, terra, água e agricultores qualificados. É uma questão de tempo. Eu acho que cinco anos é muito realista. Para a produção crescer, há duas maneiras: aumentar a produtividade das plantas existentes ou plantar novas mudas. Não sei qual será o plano, talvez ambos, mas há espaço para (o país) aumentar a produtividade apenas usando melhores insumos, fertilizantes, irrigação. Ampliar [a área de cultivo] leva mais tempo, porque quando você coloca uma semente no solo, demora quatro anos para a árvore crescer e até cinco anos para essa planta dar frutos.
GR: O Brasil vai exportar cacau?
Arrion: Há um mercado internacional para a exportação do cacau brasileiro. Eu não teria dito isso há três anos, porque isso poderia causar queda nos preços, (em um momento de oferta) excedente no mercado mundial. Hoje, temos um déficit, que acredito que seja estrutural. A demanda por chocolate está crescendo no mundo por razões demográficas, e estamos vendo surgir uma classe média em países emergentes com renda disponível para comprar chocolate. O consumo de chocolate por pessoa no Brasil, por exemplo, é de cerca de 3 quilos ao ano. Na Alemanha e na Suíça, a média chega a 8, 9 quilos. Então, (o Brasil) pode dobrar o consumo doméstico e, ao mesmo tempo, exportar mais.
GR: O que muda no mercado internacional se o Brasil atingir a meta de se tornar autossuficiente na produção?
Arrion: Não muda muito, porque hoje o Brasil importa entre 20.000 e 30.000 toneladas por safra, principalmente da África. Em um mercado global de 5 milhões de toneladas, isso é muito pouco. Em termos de substituição de importações, não haveria impacto algum. Mas, nas exportações, o Brasil poderia de fato mudar alguns fluxos comerciais tradicionais. O país pode exportar a amêndoa, mas essa não é a melhor maneira de agregar valor. É melhor agregar valor exportando cacau processado: pó, manteiga, li-cor ou massa base de cacau.
GR: Para quais mercados o Brasil poderia exportar?
Arrion: Para grandes produtores de chocolate da Europa ou da América do Norte, mas, ainda mais importante, para os grandes da Ásia. A demanda global por chocolate está crescendo, mas em ritmos distintos nos diferentes lugares. A Europa e a América do Norte estão saturadas. Europeus e americanos já alcançaram um nível muito alto de consumo, e a demografia está estável – eles não fazem mais filhos. Quem está tendo filhos? Indianos, indonésios, malaios… É aí que está o futuro do consumo. E tenho certeza de que o Brasil tem boas conexões com os mercados asiáticos.
GR: O Brasil pode voltar a figurar entreos três maiores produtores?
Arrion: Sim, talvez no “top 3” ou “top 4”. Com uma produção crescente e bons preços, qualidade, imagem e reputação, eu diria que (é possível competir com) o Equador, o terceiro maior, com meio milhão de toneladas por safra.
GR: O que o Brasil pode ensinar a outros países e o que pode aprender com eles?
Arrion: Essa é uma questão sensível,porque a produção de cacau baseia-senos pequenos produtores. Na África, são plantações de 2 hectares, em sua maioria, e no Equador, de 4 ou 5 hectares. Praticamente não existem fazendas cacaueiras de grande escala em lugar algum. Claro que há exceções. O modelo no Brasil é também de pequenos produtores, creio que em áreas de 5 a 20 hectares. A questão é: o plano para 2030 vai se concentrar nessas pequenas propriedades, investir no aumento de produtividade e repetir esse modelo ou vai optar por uma escala maior? Ainda não sabemos.
É possível usar o cacau em iniciativas de restauração de terras desmatadas por meio de agroflorestas, além de diversificar a fonte de renda com outras culturas
— Michel Arrion, diretor
GR: Como o senhor avalia o plantio de cacau em áreas não tradicionais, como o Cerrado brasileiro?
Arrion: Eu não conheço a geografia do Brasil, então é difícil de dizer, mas qualquer lugar entre 0º e 10º de latitude a partir da Linha do Equador, ao norte ou ao sul, é adequado para o cultivo, desde que haja água e temperatura adequada. É possível usar o cacau para restaurar terras desmatadas por meio de agroflorestas, além de diversificar as fontes de renda com outras culturas, como banana, coco, mandioca, inhame e goiaba.
GR: O preço do cacau na Bolsa de Nova York hoje está em torno de US$ 8.000 a tonelada. Ele pode voltar a ficar entre US$ 2.000 e US$ 3.000?
Arrion: Devo ser cuidadoso, porque, quando faço declarações sobre preços, o mercado pode ser influenciado, e eu não quero interferir. Não estamos envolvidos em transações comerciais, e não quero gerar um impacto negativo no mercado. Mas, claro, estamos produzindo previsões trimestrais para nossos membros, e o Brasil é um deles. Acreditamos que teremos alguma restauração do equilíbrio no mercado, mas os preços provavelmente permanecerão altos, no nível atual.
GR: Por quê?
Arrion: As grandes fabricantes de chocolate precisam de estoques para cerca de quatro meses. Devido à escassez de cacau e aos preços elevados, as empresas usam seus estoques para tentar manter o preço ao consumidor em um patamar estável. Mas hoje essas empresas têm que repor os estoques. A demanda por cacau continuará forte, e acho que isso ajudará a manter os preços em um nível razoavelmente alto.
GR: Existe risco de um déficit global?
Arrion: Acredito que, até o fim de setembro de 2025, o mercado estará equilibrado. Não prevemos escassez. A África tem duas colheitas: a primeira safra, entre outubro e março, e a segunda, de abril a setembro. Em maio, quando teremos um retrato da safra principal, que representa 80% da produção, será possível fazer uma previsão mais assertiva.
GR: Por que os produtores africanos não se beneficiam dos altos preços?
Arrion: Em países africanos, comoCosta do Marfim e Gana, o mercado é regulado, e o Estado fixa um preço obrigatório. Esse sistema é favorável aos cacauicultores quando os preços estão caindo, porque ele garante preço quando o mercado se retrai. É por isso que alguns países implementaram um sistema de preço obrigatório. Na situação atual, o sistema não permite uma transferência completa do preço internacional em benefício do agricultor. Além disso, os produtores na África vendemadiantado. Eles estão vendendo hojepara a safra de 2025/26. Então, se os preços subirem, eles não podem dar um preço melhor na porta da fazenda para o agricultor, porque eles já venderam.
GR: Quais são os maiores desafios da produção mundial?
Arrion: Para mim, combater pragas e doenças é a prioridade número um. O Brasil teve uma experiência terrível com a vassoura de bruxa, que fez a produção cair de 400.000 para 100.000 toneladas. Agora, tem a ameaça da monilíase, que está em toda a América Latina e no Caribe. De 20% a 30% da produção mundial está comprometida por doenças. Como não há tratamento para muitas dessas doenças, é preciso podar e queimar as árvores doentes, esperar dois anos paraplantar novamente e esperar mais cinco anos para elas frutificarem.
GR: E o clima?
Arrion: O clima vem em segundo, claro. No longo prazo, as mudanças climáticas afetam as fazendas porque alteram os padrões de chuvas. Temos água demais durante a estação seca e não temos água suficiente na estação chuvosa. Esses padrões comprometem a lavoura. No passado, todo produtor sabia que em novembro tinha que fazer a capina, que em janeiro vinha a poda e, em março, a aplicação de fertilizante. Hoje, não se sabe mais. É preciso desenvolver árvores resistentes à seca. A resposta para isso é simples: dinheiro. É necessário investir em insumos e soluções para lidar com essas mudanças.
GR: Na África, há casos de contrabando de cacau e de garimpo ilegal. Comoo senhor avalia esses problemas?
Arrion: Isso acontece por causa do preço. Imagine que no Paraguai o preço é muito alto. O brasileiro vai para o Paraguai para receber. Atravessadores cruzam as fronteiras na África e vendem para lucrar mais. Mas estamos falando de 100.000 ou 200.000 toneladas contrabandeadas em uma safra de 5 milhões de toneladas. Não tem grande impacto. O problema do garimpo ocorre apenas em Gana e é muito sério. O antigo nome de Gana era “Costa do Ouro”. O solo do país é cheio de ouro, e nesses locais ficam também as lavouras de cacau. As pessoas vendem as terras para garimpeiros, que ganham muito dinheiro por um ano e depois destroem as plantações. Eles poluem o solo com mercúrio, chumbo, arsênio. É terrível.
GR: Como convencer pequenos produtores a pensar em sustentabilidade?
ARRION: Com dinheiro. Os produtores rurais têm que ver que a sustentabilidade dá lucro. Eles não são estúpidos, sempre irão para onde puderem ganhar mais dinheiro.