O tratamento diferenciado para acesso à aposentadoria rural, com idade mínima exigida menor do que na urbana, impõe um custo de manutenção alto ao INSS e é um dos principais problemas atuais para o Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Uma reforma que aprove a convergência gradual das idades mínimas da aposentadoria rural para a urbana traria algum alívio ao cenário desafiador de sustentabilidade das contas previdenciárias. Além disso, uma reforma no RGPS rural não deve atacar somente as despesas, já que as receitas do segmento são praticamente inexistentes. É o que apontam e defendem Rogério Nagamine, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, e Bráulio Borges, do Instituto Brasileiro de Economia (FGV Ibre).
“A aposentadoria rural é um dos principais problemas do RGPS, e o RGPS é o principal problema das contas fiscais primárias brasileiras”, escreve Luiz Guilherme Schymura, diretor do FGV Ibre, na carta deste mês do instituto sobre o tema, antecipada ao Valor.
A carta observa que o resultado primário do governo federal nos 12 meses terminados em junho, por exemplo, seria de superávit de 2,6% do PIB, e não o 0,1% realizado, não fosse o déficit de 2,5% do PIB do RGPS no mesmo período. Esse resultado negativo da previdência do setor privado, por sua vez, deve-se muito mais à previdência rural, que somou um rombo de 1,7% do PIB no período, do que à urbana, com déficit de 0,8% do PIB.
Com exceção de 2020, ano da pandemia, o déficit do RGPS urbano diminui desde 2019, quando foi aprovada a reforma da Previdência. De um déficit de 1,04% do PIB em 2019, passou a resultado negativo de 0,76% em 2024. “Isso é resultado mais da recuperação de receitas previdenciárias, porque o desemprego está caindo, e a formalização, aumentando, enquanto a despesa cresce, ainda mais com a retomada do reajuste real do salário mínimo”, diz Borges.
Já o déficit da aposentadoria rural caiu de 1,66% do PIB em 2019 para 1,44% em 2021, mas entrou de novo em tendência de alta, atingindo 1,54% do PIB em 2024.
Receita em queda
A receita do RGPS urbano vem crescendo desde 2021, chegando a 5,46% do PIB em 2024, enquanto a receita do RGPS rural, um imposto sobre a comercialização de produtos agrícolas, é quase irrelevante, diz a carta, e, mesmo assim, vem caindo: de 0,12% do PIB em meados da década passada para 0,08% em 2024. Todos os números excluem despesas com sentenças judiciais, os precatórios.
O contingente de trabalhadores primários no agronegócio – pessoas que lidam diretamente com agricultura, pecuária e atividades extrativas vegetais – tem caído em termos absolutos: passou de mais de 10 milhões de pessoas em 2012 para quase 8 milhões em 2024, observa Borges. “Mas ainda representa 7,8% da população ocupada. Uma arrecadação de 0,08% do PIB é bastante baixa para isso”, afirma.
A aposentadoria rural é concedida aos brasileiros que comprovem trabalho no campo (ao menos 15 anos), com idade mínima de 60 anos para os homens e de 55 para as mulheres, contra 65 anos para homens e 62 anos para mulheres na aposentadoria urbana.
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Os pesquisadores ressaltam que as regras da aposentadoria rural permanecem praticamente inalteradas desde a sua criação, na Constituição de 1988, mesmo depois de várias reformas promovidas na Previdência, inclusive a última, de 2019, que aumentou a idade mínima para aposentadoria urbana.
“A gente precisa completar a reforma de 2019. Ela foi muito importante, mas deixou de fora praticamente qualquer tipo de mudança no RGPS rural, sendo que muita coisa mudou, e isso é um problemaço, porque tem um déficit que é praticamente o dobro do urbano e não tem receita quase nenhuma, só despesa”, diz Borges.
Ele e Francisco Pessoa, também pesquisador associado do FGV Ibre, comparam o RGPS rural do fim dos anos 1980 a “uma realidade de Vidas Secas”, uma referência à obra de Graciliano Ramos sobre a vida de uma família em meio à seca no sertão nordestino. “A agricultura familiar de hoje é muito diferente do que era 30, 40, 50 anos atrás. Ela era muito associada à extrema pobreza. Qualitativamente, isso mudou muito”, diz Borges.
Expectativas de vida
O tratamento diverso entre as aposentadorias rural e urbana se explicava pelas diferentes expectativas de vida no campo e na cidade, o que não se justifica mais, diz Nagamine. Já em 2010, a esperança de vida média dos domicílios rurais era de 75,5 anos, ante 73,2 anos para a população urbana.
“É claro que tem de ser uma convergência gradual. Tem uma resistência grande no Congresso, especialmente da bancada do Nordeste, onde a previdência rural no interior é muito relevante. Lembrando que a reforma da Previdência que o governo encaminhou em 2019 mexia na aposentadoria rural e, durante a tramitação, o Congresso derrubou. Mas não justifica ter uma diferença de idade de aposentadoria da mulher urbana para a rural de sete anos, ou do homem urbano para a mulher rural de dez anos”, diz Nagamine.
A aposentadoria rural é um dos principais problemas do RGPS”
— Luiz Schymura
Considerando os óbitos a partir de 65 anos ou mais, que é a idade mínima da aposentadoria por idade urbana para homens, as idades médias de óbito dos aposentados convergiram nas últimas décadas e, em 2018, eram muito próximas nas aposentadorias por idade urbanas (80,7 anos) e rurais (80,3 anos), aponta Nagamine.
“A menor idade de acesso à aposentadoria combinada a expectativas de vida relativamente similares tende a gerar benefícios com maior duração média para os segurados rurais do INSS em relação aos aposentados por idade urbanos”, escreve Schymura.
Irregularidades
Os pesquisadores também dizem existir indícios de que uma proporção relevante das aposentadorias rurais é concedida de forma irregular. Segundo Nagamine, o patamar de 400 mil novas aposentadorias rurais por ano no período de 2022 a 2024 só foi observado no início da década de 1990, logo após a aposentadoria rural nos moldes atuais ter sido regulamentada. “E tudo indica que 2025 também vai ter concessão alta”, diz.
Ele recomenda, como forma de reduzir o déficit da aposentadoria rural, que a idade mínima convirja para o mesmo critério da aposentadoria por idade urbana, isto é, 65 anos para homens e 62 anos para mulheres.
Um estudo anterior de Nagamine, Fabio Giambiagi e Otávio Sidone já estimava que a economia decorrente da convergência gradual das idades de aposentadoria rural para os mesmos níveis da urbana seria de cerca de R$ 900 bilhões em 30 anos e de quase R$ 2 trilhões em 50 anos, a preços de 2023.
“Seria bastante significativo do ponto de vista fiscal, mas não é apenas uma questão fiscal. Está se criando uma desigualdade de tratamento que é, por exemplo, uma mulher pobre na área urbana só ter acesso a benefício aos 65 anos pelo BPC e uma mulher que não necessariamente é pobre na zona rural ter benefício aos 55 anos, uma idade em que, provavelmente, ela não tem nem perda de capacidade laboral”, diz Nagamine.
“A gente poderia ter um efeito ainda maior se fizesse algum tipo de ajuste também na contribuição previdenciária no setor rural, que é muito baixa”, acrescenta Borges. “Temos de cobrar mais do agro também, porque é um sistema praticamente não contributivo”, afirma, reconhecendo que, politicamente, a medida não é fácil.
“Tem uma questão moral e ética complicada. A gente está sempre falando da aposentadoria rural, do BPC, e aquelas mudanças no Congresso de privilégios dos militares e dos penduricalhos estão lá. Pensando em termos políticos, já que vai mexer nisso [aposentadoria rural], mexe em todo mundo, senão, não consegue”, afirma Pessoa.