Uma combinação de juro alto, produtores alavancados e aumento dos pedidos de recuperação judicial no agro tem restringido o acesso aos certificados de recebíveis do agronegócio (CRAs) às grandes empresas do setor, algo que ocorre ao mesmo tempo em que os bancos se retraem na concessão de crédito. Como fonte de financiamento alternativa, as empresas de menor porte e produtores rurais passaram a recorrer mais aos fundos de direitos creditórios (FIDCs) e às emissões de Cédulas de Produto Rural (CPRs). Os produtores mais alavancados têm procurado até mesmo fundos de situações especiais, os chamados “special sits”.
No entanto, alguns sinais já chamam atenção nesses instrumentos. Levantamento feito a pedido do Valor pela Uqbar, consultoria especializada em estruturados, mostra que, no ano, a inadimplência cresceu. Nos Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagros), saiu de 6,32% em dezembro para 21,62% em julho. E, nos FIDCs exclusivos de recebíveis do agro, avançou de 5,89% em dezembro para 12,74% em julho. “O setor todo está de ressaca, depois da abundância nas linhas de crédito na pandemia”, resume Marcelo Aoki, fundador da Catálise Investimentos, que tem R$ 12 bilhões sob gestão em FIDCs.
Alfredo Marrucho, diretor da Uqbar, frisa que no conjunto de FIDCs o patrimônio dos concentrados no agro ainda é pequeno, 2,73% (R$ 14,7 bilhões) do total da classe, e que o aumento da inadimplência não é uma ameaça, mas representa a situação do setor. Tanto as CPRs quanto os FIDCs agro podem ser adquiridos pelos Fiagros.
O acesso a instrumentos de mercados de capitais no agro cresceu rapidamente nos últimos anos, com mais produtos sendo ofertados, caso dos Fiagros, por exemplo. Para um produtor rural ter acesso a um CRA, ela precisa emitir uma CPR, título que é repassado a uma securitizadora, que por sua vez emite os recebíveis. Para se ter uma dimensão, as emissões de CPRs crescem em ritmo acelerado. Em julho, conforme dados da B3, o estoque estava em R$ 417 bilhões — era de R$ 387 bilhões no fim de 2024 e de R$ 250 bilhões em dezembro de 2023.
Paulo Froes, responsável pela área de mercado de capitais da StoneX, plataforma global de serviços financeiros, explica que a migração do agro para os FIDCs também está relacionada a condições melhores de negociação em caso de dificuldades financeiras. “O FIDC dá tempo para negociar. No CRA, se [o tomador] não pagar, tem vencimento antecipado. Para uma empresa que já está com dificuldades de pagar, ser chamada a quitar todo o CRA agrava ainda mais a situação”, diz.
Ele estima que 20% das recuperações judiciais em andamento atualmente aconteceram porque o emissor não conseguiu renegociar os “covenants” — cláusulas que estabelecem regras e condições para o tomador. “O ano de 2024 foi temporada de renegociação de ‘covenants’, e ainda está acontecendo. O agro está aprendendo pela dor”, afirma o executivo da StoneX, que tem 1,6 mil clientes do setor.
Bruno Lund, diretor da Eco Gestão de Ativos do grupo Ecoagro, que começou como consultoria e depois ampliou o escopo de atuação para securitização e gestão, lembra que a euforia com o desempenho do setor fez muitos produtores comprarem terras para ampliar a produção, mas muitos não conseguiram. Estão hoje engordando os índices de inadimplência dos bancos e muitos entraram em recuperação judicial.
Segundo o indicador de Recuperação Judicial Agro da Serasa Experian, só no segundo trimestre de 2025 o setor teve 565 solicitações da medida judicial. Frente aos 429 pedidos do mesmo período do ano anterior, houve alta de 31,7%. Os dados incluem produtores rurais pessoas físicas e jurídicas e empresas relacionadas ao agronegócio.
Enquanto isso, os volumes da dívida estão crescendo. Estudo da consultoria Virtus feito para o Valor mostra que há um volume entre R$ 86,6 bilhões e
R$ 95,6 bilhões de dívida em renegociação ou com “alto potencial de renegociação”, sendo uma das razões o aumento da alavancagem do setor agrícola em combinação com a queda dos preços das commodities.
Tiago Salvagni, sócio da Virtus, aponta que a seletividade dos investidores está restringindo o crédito para emissores de porte médio, com uma preferência clara para as emissões dos considerados “de primeira linha”. Nesse sentido, as empresas de porte médio tendem a enfrentar um estresse ainda maior na busca por crédito. “Muitas recorrem a, além de FIDCs, cooperativas de crédito, fintechs, entre outros, quase sempre com exigência de garantias adicionais e custo mais elevado”, afirma.
Mariana Pollini, sócia de Mercado de Capitais do Lefosse Advogados, diz que a procura por CRAs caiu, enquanto cresceu por operações com FIDCs, que segundo ela têm uma estrutura que permite maior diversificação do risco e controle, além de permitir crédito em prazos menores, mais adequados às safras. “É uma indústria resiliente, mas os problemas vêm se refletindo na inadimplência e disparando cláusulas da operação”, avalia. Fiagros e FIDCs, afirma Pollini, tiveram maior procura para atendimento jurídico pelo escritório por estouro de nível de atrasos.
O crédito mais restrito ao setor tem contaminado mais produtores e empresas, com muitos casos em que há falta de liquidez para a próxima safra, aponta o sócio da gestora de investimentos alternativos Strategi, Cristian Lara. “Dinheiro novo está cada vez mais restritivo e o crédito está sendo dado aos nomes mais conhecidos”, diz o executivo.
Na Strategi, segundo ele, a atuação tem sido por meio de duas vertentes: a primeira por meio de crédito vencido no mercado, ou seja, já estressado. A segunda é por meio do financiamento DIP (Debtor-In-Possession), que é aquele que possui prioridade no pagamento dentro de recuperações judiciais.