Em 516 cidades do Brasil, ou 9% dos municípios no país, há mais gente recebendo benefícios rurais do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) do que população morando no campo, de acordo com o último Censo, de 2022.
Aposentadoria rural precisa de reforma, defendem especialistas
Os registros previdenciários partem de um conceito de “rural” diferente das pesquisas do IBGE, mas, ainda assim, discrepâncias tão grandes são mais um indício de que há fraudes na previdência rural, dizem pesquisadores. Aposentadorias representam 74% dos benefícios rurais, e pensão por morte, outros 24%.
Em 32 cidades, o Censo sequer identificou população no campo, e, ainda assim, há pagamento de benefícios rurais, segundo cruzamento de dados feito pelo Valor. É o caso de capitais como Fortaleza, Salvador, Natal, Belo Horizonte, Recife, Curitiba e Vitória.
Diadema, na Grande São Paulo, também registra essa peculiaridade. Na mesma região metropolitana, Osasco até tem gente no campo, mas o estoque de benefícios rurais no fim do ano passado era 229 vezes maior que essa população. É o terceiro município do país com uma diferença tão grande, considerando as cidades com população rural identificada.
Em primeiro lugar, aparece outra capital, Aracaju, onde os benefícios rurais são 702 vezes a população no campo. Há outras capitais nesse ranking, como Rio de Janeiro, Maceió e João Pessoa.
Procurado, o Ministério da Previdência Social não respondeu os questionamentos da reportagem e se limitou a dizer que está analisando um acórdão do Tribunal de Contas da União sobre o tema dos benefícios rurais.
“Eles costumam alegar que o dado é referente ao local de pagamento. Mas, mesmo que seja, há discrepâncias, sim, grandes, quando abrimos essas informações”, diz Rogério Nagamine, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal. “Sabemos que tem fraude na aposentadoria rural. Não sabemos o tamanho, mas temos indícios de que pode ser relevante”, afirma.
Há discrepâncias, sim, grandes, quando abrimos essas informações”
— Rogério Nagamine
Francisco Pessoa, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia (FGV Ibre), observa que o solicitante do benefício não precisa morar no campo para pedir aposentadoria rural, por exemplo; ele pode viver em um aglomerado urbano ou cidade vizinha, desde que comprove atividade rural por ao menos 15 anos. “Pode haver cidades que se esvaziaram, quedas de áreas plantadas, pessoas que saíram da área rural. Principalmente no Norte e no Nordeste, vemos alterações demográficas importantes”, pondera.
Em 2024, segundo registros administrativos, havia um estoque de 10 milhões de aposentadorias e pensões por morte rurais. Mas a Pnad Contínua, pesquisa do IBGE, do mesmo ano aponta um total de 4,3 milhões de aposentados em domicílios na área rural, nota a carta deste mês do FGV Ibre, antecipada ao Valor. Essa comparação precisa ser feita com cautela, já que a Pnad é uma pesquisa amostral e, portanto, tende a ser menos precisa do que registros administrativos. Além disso, na Pnad, a noção de “rural” está atrelada ao local de domicílio, enquanto nos registros previdenciários o que vale é a atividade econômica que foi exercida.
Ainda assim, a discrepância é relevante e demanda uma análise mais profunda, dizem pesquisadores, inclusive por causa da tendência estrutural de diminuição da população rural e dos trabalhadores na agropecuária. “A aposentadoria rural exige a comprovação do exercício da atividade rural, e a gente sabe que isso é complexo, é um desenho que gera muita judicialização e abre brecha para fraudes”, afirma Nagamine.
“Na reforma de 2019, eliminamos uma das formas de comprovação do exercício de atividade rural que era a declaração do sindicato. Havia denúncias de que pessoas, às vezes os sindicatos, vendiam essa declaração para depois cobrar contribuição associativa. Mas tinha a previsão também de criar o cadastro do segurado especial da área rural no CNIS [Cadastro Nacional de Informações Sociais], que ainda não entrou em operação”, conta Nagamine.
A ideia, diz, era que a comprovação de atividade rural fosse feita exclusivamente pelo cadastro. A proposta inicial do governo era que isso valesse a partir de 2020, mas o prazo foi empurrado para 2023 pelo Congresso.
Para Nagamine, a concessão de benefícios rurais por meio do cadastro dos segurados especiais precisa entrar em vigor o mais rapidamente possível para fortalecer o controle das concessões já no curto prazo.