O câncer de pele é o tipo mais comum no Brasil e no mundo, segundo o Ministério da Saúde. Somente no triênio 2023-2025 são esperados 704 mil novos casos novos da doença no país, aponta o Instituto Nacional de Câncer (INCA).
Apesar da alta incidência, a identificação de tumores ainda é um desafio — o que pode atrasar o início do tratamento e comprometer as chances de cura. Com os avanços tecnológicos atuais, em especial o uso das inteligências artificiais, a expectativa é que o diagnóstico da doença se torne cada vez mais precoce.
Câncer de pele: o que é preciso saber
A formação de tumores malignos na pele ocorre quando as células crescem de forma descontrolada. Há dois grandes grupos da condição: os carcinomas e os melanomas.
Os tumores não melanoma (como o carcinoma basocelular e o espinocelular) são mais frequentes e, geralmente, menos agressivos. No Brasil, correspondem a 30% dos casos, segundo o Ministério da Saúde.
O melanoma é mais raro, mas com maior risco de metástase. Pode ser fatal se não for tratado a tempo.
Existe um atraso no diagnóstico de câncer de pele?
Infelizmente existe esse atraso, que ocorre por uma série de motivos, como enumera a dermatologista Gisele Rezze, mestre e doutora em Oncologia:
- Falta de informação da população, o que impede o reconhecimento dos sintomas;
- Idade avançada do paciente;
- Lesão de crescimento lento e com ausência de dor;
- Moradia longe de centros urbanos.
O dermatologista Marcelo Sato Sano reforça a importância de reconhecer melhor as características anormais da pele. “Muitas vezes, por falta de conhecimento, manchas, pintas ou feridas que não cicatrizam são interpretadas como alterações comuns da pele, o que leva à demora na procura por atendimento médico especializado”, salienta.
Além disso, há obstáculos estruturais. Em algumas localidades do país, é possível esperar meses até que uma pessoa consiga a primeira consulta com dermatologista pelo SUS. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a Organização Doenças de Pele Brasil expôs que mais de 21 mil pessoas aguardavam o primeiro atendimento com o especialista pela rede pública estadual.
Dados do Inquérito Epidemiológico/Dermatológico 2024, realizado pela Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), apontam que 31,3% dos atendimentos feitos pelo serviço público foram de primeira consulta. Destaca-se os casos de diagnóstico de câncer de pele: 58,3% foram realizados no setor público.
Essa espera tem um custo elevado, tanto para os pacientes quanto para o sistema de saúde. “A demora no diagnóstico contribui para a descoberta de tumores em estádios avançados, levando a tratamentos mais complexos e de custo elevado e aumentando o risco de morte”, reforça Rezze.
Sintomas de câncer de pele
Entre os sinais de alerta estão:
- Pintas que mudam de tamanho, cor ou formato;
- Feridas que não cicatrizam (demoram mais de quatro semanas, por exemplo);
- Lesões com bordas irregulares ou assimétricas;
- Manchas que coçam, sangram ou apresentam crostas.
Além disso, é importante que alguns pacientes vão com mais frequência ao dermatologista por terem maior fator de risco, como:
- Pele muito clara, cabelos claros e sardas;
- Pele clara e mais de 50 anos;
- Múltiplas pintas (mais de 50);
- Antecedente pessoal de câncer de pele;
- Antecedente familiar de câncer de pele;
- Uso de medicações que diminuem a imunidade;
- Doenças que diminuem a imunidade;
- Tratamento prévio com fototerapia.
- Uso de câmara de bronzeamento artificial.
- Queimaduras solares com bolhas.
Como a tecnologia com IA pode ajudar
Existem algumas formas como as inteligências artificiais podem ajudar nesse tipo de cenário. Um estudo brasileiro publicado nos Anais Brasileiros de Dermatologia avaliou a performance do ChatGPT, modelo de linguagem da OpenAI, em diagnosticar casos clínicos. O resultado foi expressivo: 84% de acerto nos diagnósticos.
“Uma taxa de acerto de 84% é animadora e mostra que essas ferramentas já conseguem chegar perto do desempenho de médicos não especialistas em determinadas situações. Mas, para a prática clínica, ainda considero limitada. É uma tecnologia promissora e já pode ser um grande apoio, mas não substitui o médico”, pontua o dermatologista Athos Martini, membro da SBD-RESP (Sociedade Brasileira de Dermatologia-Regional SP).
Mas o autor do estudo reforça que o artigo publicado usou somente o ChatGPT 4.0. “Existem outros modelos de IA usados e talvez essa porcentagem aumente”, pontua. O próprio ChatGPT já recebeu uma atualização desde então, com o lançamento da versão 5.0 em agosto, que traz melhorias específicas para a área da saúde. “Essa nova versão promete maior precisão, menor margem de erro e até capacidade de identificar sinais sugestivos de doenças graves, como alguns tipos de câncer, em testes iniciais. Ainda assim, não substitui o médico, mas se consolida cada vez mais como uma ferramenta de apoio clínico”, explica Daniel Cassiano, diretor da SBD-RESP.
“Algoritmos de visão computacional já demonstraram desempenho comparável ao de especialistas na identificação de lesões suspeitas, o que abre caminho para ampliar o acesso à triagem, especialmente em locais com poucos dermatologistas”, completa Sato.
Modelo incorporado na prática
Um exemplo é um aplicativo que utiliza um algoritmo de inteligência artificial e rede neural convolucional, criado para analisar lesões cutâneas por meio de fotos tiradas com smartphones. A proposta é que a ferramenta seja usada em dispositivos com menor capacidade técnica, como os encontrados em unidades de saúde do setor público e privado, ou até mesmo em celulares mais simples de profissionais, democratizando o acesso à triagem.
Para o treinamento da IA, foram usados bancos de imagens de pele disponibilizados por instituições como AC Camargo, USP Ribeirão Preto, Hospital das Clínicas, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), entre outros, explica Willian Boelcke, fundador e CEO da AI Pathology, startup brasileira que criou a ferramenta. Com isso, o empresário aponta uma acurácia de 93%, resultado melhor do que o estudo brasileiro com o ChatGPT 4.0.
“Criamos uma das IAs com todos os subtipos de pele”, complementa o Boelcke, ressaltando a relevância da tecnologia 100% nacional, que foi reconhecida pela Escola de Saúde Pública de Harvard e atraiu interesse de grandes empresas de tecnologia como Google, Nvidia e Oracle — além de instituições médicas brasileiras de prestígio, como a Universidade de São Paulo (USP).
Impacto para o sistema de saúde
Com a leitura das imagens, é possível identificar a probabilidade da lesão ser benigna ou suspeita e, com isso, priorizar os atendimentos mais urgentes. Além do benefício individual, a ferramenta tem potencial para melhorar a gestão de recursos na saúde pública.
Como atua na fase de triagem, ela pode ajudar a organizar filas de espera com base em critérios clínicos. “Conseguimos acelerar mais de 20 atendimentos que levariam muito tempo para acontecer. Em um dos casos, a pessoa tirou uma foto da pinta, a IA indicou risco e nossos dermatologistas confirmaram. O atendimento foi agilizado e o diagnóstico de câncer confirmado em estágio inicial”, conta Boelcke.
Segundo o fundador da AI Pathology, o Instituto do Câncer de Pele de Goiânia registrou uma economia de mais de R$ 3 milhões em apenas quatro meses com o uso da ferramenta, justamente por evitar diagnósticos tardios que geram tratamentos mais caros.
“Um plano de saúde com 100 mil vidas chega a gastar até R$ 10 milhões por ano com câncer de pele. Se conseguimos detectar precocemente, reduzimos esse custo significativamente”, afirma.
Limites e responsabilidade no uso da IA
O objetivo com a nova tecnologia não é substituir a consulta médica, mas atuar como uma etapa prévia de triagem. “Nenhuma inteligência artificial tem 100% de acurácia. No melhor dos cenários, a IA colabora com o médico — e não tenta fazer tudo sozinha.”
Ele também alerta para o risco do autodiagnóstico, um fenômeno crescente com a internet. Por isso, o aplicativo foi desenhado para funcionar em parceria com instituições de saúde: o paciente não recebe o diagnóstico direto no aplicativo. Em vez disso, o sistema aciona o atendimento adequado, priorizando os casos com maior risco.
“As IAs podem ser aliadas poderosas na redução do atraso diagnóstico, mas o impacto positivo depende de validação clínica, regulação adequada e integração com o atendimento médico especializado”, reforça Marcelo Sano Sato.
Para os especialistas consultados, aliar à tecnologia ao conhecimento humano é fundamental nos dias de hoje. “No futuro, pode ser que, em tarefas muito específicas e de baixo risco, a tecnologia consiga atuar quase de forma autônoma, mas a decisão diagnóstica e terapêutica final continuará sendo do médico”, reforça Martini.
Regulação e parcerias
Embora já esteja em uso em instituições parceiras, a tecnologia ainda aguarda aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para ser comercializada em larga escala. A empresa também prepara a submissão ao Food and Drug Administration (FDA), a agência reguladora dos Estados Unidos.
Isso é importante por questões também éticas. “Precisamos de uma definição legal sobre corresponsabilidade em caso de erro, em que se determine o papel do desenvolvedor, do estabelecimento de saúde e do médico responsável. Além disso, é fundamental garantir a segurança de dados dos pacientes, em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados, e estabelecer protocolos de auditoria e rastreabilidade, como já acontece com outros serviços”, reforça Athos Martini.