* Artigo escrito pela endocrinologista Maria Fernanda Barca, integrante do grupo de Tireoide do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). O texto foi originalmente publicado na plataforma de divulgação científica The Conversation Brasil.
– Eu sou seu fígado. Estou sendo prejudicado pelo excesso de gordura infiltrado entre as minhas células. Por favor, cuide disso antes que eu comece a falhar.
Se pudesse, o fígado de uma a cada três pessoas faria esse apelo. Estima-se que entre 25% e 30% da população adulta mundial tenham algum grau de gordura no fígado, condição chamada de esteatose hepática ou doença esteatótica associada à disfunção metabólica (sigla MASLD, em inglês).Play Video
No Brasil, dados citados pela Sociedade Brasileira de Hepatologia indicam em torno de 20% de esteatose hepática na população geral. Quando pacientes diabéticos são avaliados pelo ultrassom em relação à presença de esteatose, 70% são portadores da doença.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) se preocupa com o aumento de casos de esteatose hepática, especialmente em países com altos índices de obesidade e diabetes, caracterizando uma epidemia global e silenciosa que já afeta populações mais jovens.
A doença costuma progredir em silêncio, e agrava os riscos à saúde com o passar do tempo. O fígado, a maior glândula do corpo, desempenha funções essenciais como filtrar o sangue, eliminar toxinas, produzir bile, armazenar vitaminas e minerais, regular a coagulação sanguínea e metabolizar hormônios e medicamentos.
O excesso de gordura afeta essas funções, causando inflamação e predispondo o órgão a problemas graves como esteato-hepatite, fibrose, cirrose e câncer.
Esse acúmulo pode ocorrer por várias razões. Uma delas é a entrada excessiva de ácidos graxos no sangue, provenientes da dieta ou da oxidação da gordura. Ácidos graxos são componentes básicos de lipídios, que são moléculas essenciais para armazenar energia e formar estruturas celulares, como as membranas.
Outra via é a produção aumentada de gordura pelo fígado a partir da glicose, comum em pessoas com resistência à insulina (hormônio que leva a glicose para dentro das células) ou ingestão de carboidratos em excesso. Problemas nas mitocôndrias (as “usinas” de energia das células) também diminuem a queima de gordura, favorecendo o acúmulo.
As alterações na composição da microbiota intestinal (a disbiose) também podem prejudicar a produção de ácidos graxos e aumentar a permeabilidade intestinal, facilitando a entrada de toxinas que inflamam o fígado. A microbiota é o conjunto de microrganismos (como bactérias, vírus e fungos) que habitam diversas partes do corpo, especialmente o intestino. Além disso, mudanças na microbiota afetam o metabolismo de gorduras e açúcares, agravando a resistência à insulina.
Quem está mais vulnerável?
Os grupos de maior risco incluem indivíduos com sobrepeso ou obesidade, diabetes tipo 2, hipertensão e dislipidemias (alterações das diversas frações de gordura no sangue, como colesterol e triglicérides).
Nota-se também que a síndrome dos ovários policísticos, a apneia obstrutiva do sono e algumas condições hormonais, como o hipotireoidismo, estão associadas ao desenvolvimento da esteatose hepática. O uso de alguns medicamentos, como certos corticosteroides (entre outras substâncias), pode também contribuir para o processo.
O diagnóstico precoce é fundamental, pois a esteatose geralmente não apresenta sintomas evidentes. Quando surgem, incluem dor abdominal, fadiga extrema e perda de peso inexplicável. Isso significa que a doença já evoluiu para sua forma mais grave, como fibrose avançada ou mesmo cirrose, insuficiência hepática e câncer.
Especialmente aqueles que se encaixam nos grupos de risco devem realizar exames de rotina para monitorar a saúde do fígado. O ultrassom abdominal é o exame mais acessível para diagnosticar a esteatose hepática, permitindo a avaliação do acúmulo de gordura no órgão.
A elastografia hepática (FibroScan) é também um exame não invasivo que permite avaliar a rigidez do fígado, além da quantidade de gordura e fibrose presentes. Outro método altamente preciso para quantificar a gordura depositada é a ressonância magnética. Já a biópsia hepática, que faz uma análise direta da quantidade de gordura e detecta inflamação e fibrose, é indicada apenas em casos mais graves.
Identificada precocemente, a esteatose pode ser revertida com mudanças na alimentação, hábitos e uso de terapias medicamentosas. O acompanhamento médico, testes e exames periódicos são essenciais para avaliar o sucesso dos tratamentos adotados.
Estilo de vida importa
O estilo de vida atual talvez seja o fator de risco mais comum para a esteatose hepática. O consumo elevado de alimentos ultraprocessados (ricos em açúcares e gorduras saturadas) somado ao sedentarismo é determinante para o aumento da gordura hepática.
A ingestão constante e exagerada de bebidas alcoólicas tem sua parcela de culpa. O limite saudável para mulheres é de menos de 140 gramas de álcool por semana (9-10 taças de vinho ou 10-12 latas de cerveja). Para os homens, menos de 210 gramas (14-17 taças de vinho ou 15-18 latas de cerveja).
Portanto, adotar um estilo de vida saudável, praticar com regularidade uma atividade física, limitar o consumo de álcool, realizar exames de rotina e prestar atenção aos sinais do corpo são atitudes que podem fazer diferença na prevenção da esteatose hepática e para saúde em geral.
Gerenciar o estresse e procurar ajuda psicológica igualmente podem ser medidas positivas, uma vez que os fatores emocionais influenciam os hábitos alimentares e o cuidado com a saúde.
A compreensão da gravidade da esteatose hepática é muito importante para toda a sociedade. Atualmente, as doenças hepáticas são a décima causa de morte da população em geral, mas a terceira entre os pacientes com gordura no fígado e inflamação.
Abordagem holística
A natureza multifacetada das causas da doença hepática esteatótica associada à disfunção metabólica e a relação entre essa e outras condições, como diabetes, síndrome metabólica, diverticulite ou inflamação crônica, fundamentam a necessidade de uma abordagem holística para o tratamento.
Quando prossegue sem freios, a esteatose seguida pela esteato-hepatite faz o fígado se tornar fibroso. Nessa condição, ele não mais realiza as suas funções adequadamente, com aumento do risco de insuficiência hepática. Muitas vezes, a perda de 5% a 10% do peso corporal se desdobra em melhorias significativas na saúde do fígado.
O uso de inibidores de SGLT2, como empagliflozina (nome comercial Jardiance) e dapagliflozina (Forxiga) é, atualmente, uma das grandes esperanças. Esses medicamentos tem sido eficazes na redução do risco cardiovascular e gordura hepática especialmente em pacientes com diabetes tipo 2. A pioglitazona (Actos) também melhorou a resistência à insulina e a inflamação hepática.
As pesquisas evidenciam ainda que a liraglutida (Saxenda), exenatida (Byetta) e semaglutida (Ozempic), além de tratar o diabetes tipo 2, atuam com sucesso na redução da gordura hepática e na melhora dos parâmetros do perfil lipídico. A combinação de medicamentos, como dapagliflozina e exenatida, e outros fármacos antidiabéticos, promove resultados promissores em termos de segurança e eficácia no tratamento do problema.
Em estudo preliminares, a tirzepatida, um agonista dos hormônios GIP e GLP-1, mostrou boa ação sobre a esteatose. Em relação à fibrose, estão em andamento ensaios clínicos controlados (ERC), mas os resultados iniciais sugerem que o medicamento pode diminuir o grau de fibrose hepática.
Novas terapias estão em desenvolvimento, incluindo medicamentos que visam diretamente a inflamação e a fibrose hepática. Em março deste ano, a agência reguladora norte-americana, a FDA, aprovou o resmetirom, primeiro medicamento para pacientes com esteato-hepatite não alcoólica e fibrose moderada a avançada, associado à dieta e exercícios. Comercializado sob o nome Rezdiffra, é um agonista seletivo do receptor de hormônio tireoidiano tipo b (THR-b).
De todo modo, para ter êxito, a medicina já sabe que o cuidado com a esteatose hepática precisa ser feito de forma integrada, considerando as comorbidades associadas e com a promoção de mudanças no estilo de vida. Minha sugestão é que você não ignore os riscos e converse com a sua médica ou clínico geral sobre o que fazer para proteger a saúde do seu