O governo federal deu um passo nesta semana para criação de uma política inédita em relação à cadeia pecuária do país. Uma portaria do Ministério da Agricultura estabeleceu um grupo de trabalho que terá como tarefa ajudar na definição de uma política pública para a rastreabilidade individualizada de bovinos e bubalinos do país.
A rastreabilidade individualizada se daria por aplicação de brincos em todos os animais. O objetivo número 1 é melhorar o controle sanitário do gado, mas — se for implementada — a medida poderá permitir também um controle mais claro sobre o desmatamento associado à pecuária. A portaria 1.113, publicada na quarta-feira, dá prazo de 60 dias para o grupo apresentar sua proposta de como será a política de rastreabilidade.
“Hoje o ministério tem como rastrear lotes de animais. Essa rastreabilidade individual daria um controle muito melhor sobre os animais e o trânsito deles. Você vai saber onde ele nasceu, em quais fazendas ele passou e em qual frigorífico ele foi abatido”, diz Fernando Sampaio, diretor de Sustentabilidade da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec).
Ampliar os controles sobre a criação de gado e o desmatamento — em especial na região amazônica — é uma medida chave para as exportações de carne brasileira.
Em 2025, começa a valer uma legislação da União Europeia que vedará a entrada no bloco de alguns produtos (incluindo carne) que tiverem ligação com desmatamento, legal ou ilegal.
Grandes frigoríficos afirmam investir em políticas e tecnologias próprias com vistas a não comprarem gado de fazendas que foram desmatadas ilegalmente. Mas o setor continua convivendo com lacunas nas informações sobre a origem de parte do gado que chega à indústria.
O problema central e antigo é com a falta de rastreabilidade dos animais de pecuaristas que não fornecem diretamente à indústria, mas que vendem gado aos fornecedores diretos. A pergunta recorrente é quais desses indiretos destrói a mata para formar pastagens. Em média, segundo estimativas, um animal passa por cinco fazendas, do nascimento ao abate. Apenas a última é a do fornecedor direto — cujo controle é mais estrito.
“O monitoramento de fornecedores indiretos ainda é o maior desafio que o setor enfrenta, pois requer investimento em pesquisa e tecnologia, além de políticas públicas eficazes supervisionadas pelos órgãos governamentais responsáveis e o compromisso de toda a cadeia de valor para garantir a rastreabilidade completa da pecuária”, diz a Minerva Foods.
A empresa diz ter sido a primeira a expandir a adoção da tecnologia de monitoramento geoespacial para 100% dos fornecedores diretos em todos os biomas de sua atuação no Brasil (Amazônia, Cerrado, Pantanal, Caatinga e Mata Atlântica), “com o mesmo resultado para as compras de gado no Paraguai, Colômbia e Argentina”. O sistema de monitoramento geoespacial é auditado anualmente, diz a empresa.
“No âmbito de monitoramento dos fornecedores indiretos, a Minerva Foods tem atuado no engajamento dos produtores rurais ao disponibilizar a tecnologia de monitoramento utilizada pela indústria”, diz. “A ferramenta permite que os produtores monitorem seus próprios fornecedores e mapeiem os riscos antes de realizar qualquer comercialização.
A Marfrig afirma rastrear 100% de seus fornecedores diretos, de todos os biomas brasileiros. E diz já ter atingido a rastreabilidade de 85% dos fornecedores indiretos na Amazônia e de 71% dos indiretos no Cerrado, regiões estratégicas e de maior volume de animais fornecidos à empresa.
“Além disso, todos os fornecedores indiretos localizados nas áreas de maior risco já estão 100% monitorados. A área rastreada pela Marfrig corresponde a cerca de 25 milhões de hectares, o que equivale a um território maior do que o Estado de São Paulo ou o Reino Unido”, diz Paulo Pianez, diretor de Sustentabilidade da Marfrig.
Ele lembra que a Marfrig antecipou, de 2030 para 2025, sua meta de rastrear 100% dos fornecedores indiretos em todos os biomas.
A JBS desenvolveu uma plataforma na qual os fornecedores diretos inserem dados de seus fornecedores e são informados se alguns deles têm alguma irregularidade em relação à política da empresa. Liège Correia, diretora de sustentabilidade da companhia, diz que hoje 63% do volume de gado que a empresa compra está monitorado por meio da plataforma. A meta é chegar a 2026 com 100%. Auditorias regulares atestarão se os dados de todos os fornecedores estarão inseridos na ferramenta.
De um total que varia entre 25 mil a 30 mil fornecedores diretos, a empresa diz ter hoje cerca de 15% deles bloqueados, a maioria por desmatamento ilegal. A empresa ainda montou escritórios para auxiliar pecuaristas a se regularizarem.
A Frigol afirma usar o Protocolo Boi na Linha, do Imaflora, para monitoramento de fornecedores diretos, e que desde 2018 adota o protocolo de monitoramento para todos os Estados onde tem unidades de produção.
Sobre os fornecedores indiretos, a empresa diz ter iniciado o protocolo de avaliação e monitoramento de fornecedores indiretos “nível 1” (os fornecedores imediatos de seus fornecedores). No primeiro ano do projeto piloto de avaliação e monitoramento, “houve o atingimento de 77% de conformidade para fornecedores indiretos, sendo que a meta da empresa é mitigar o desmatamento por indiretos até 2030, com intenção de antecipar para 2025 a mitigação do desmatamento indireto nível 1”, informa.
Paulo Barreto, pesquisador do Radar Verde, vê um quadro mais preocupante. Análise elaborada por ele com corte exclusivo para o mercado chinês aponta que, de um total de 176 plantas de frigoríficos que operam na Amazônia, 31 estão habilitadas a exportar para a China e 71 para Hong Kong.
Barreto aponta que das 31 plantas, 20 demonstram ter controle sobre os fornecedores diretos. E que, das 71 aptas a vender a Hong Kong, 38 demonstraram controle sobre os diretos. De acordo com o pesquisador, nenhuma dessas plantas mostrou ter controle sobre os indiretos.
A China tem começado a discutir o que poderá ser um critério verde para a carne. Mas é a União Europeia que domina as atenções. As exportações atuais para o continente já contemplam plantas e fazendas onde os bois já são 100% identificados. “Entretanto, hoje o brinco de identificação só é pedido para 90 dias antes do abate. O que vai ter que mudar é que a gente vai ter que estender essa rastreabilidade até as fazendas de cria [de bezerros], e há um desafio em avançar com essa rastreabilidade”, diz Sampaio.
A Abiec tenta negociar com a UE um período de transição até que exportadores consigam se adaptar à demanda de controle de toda a cadeia da carne. “Se não tiver essa transição, provavelmente a gente vai ter algum impacto nos volumes exportados”, admite. Sampaio diz que considera um avanço a iniciativa do ministério — que vinha sendo defendida pelos exportadores — de dar sinal verde para uma política nacional de rastreabilidade.
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